Tenham medo, tenham pouco medo.

Existem relações nas quais duas pessoas que se detestam quando se conhecem, acabam depois amantes para a vida. Normalmente estas relações aparecem nas comédias românticas de Domingo à tarde e no Papuça e Dentuça mas, no meu caso, a relação apareceu em formato digital e se bem que não ficámos amantes eternos, acabámos bons amigos. A história que se segue é a da minha relação com F.E.A.R. 3.

Manda a ética das análises do Rubber Chicken que se experimente tudo quanto é possível num videojogo antes de se escrever sobre o assunto. No meu caso, toda a série de F.E.A.R. passou-me ao lado e por essa razão fui jogar as campanhas dos primeiros dois títulos. O primeiro jogo, embora com mecânicas datadas, possui uma das melhores Inteligências Artificiais de inimigos com que já me deparei. A forma como falam entre si e nos tentam flanquear não deixa de nos surpreender ao longo de toda a campanha. O outro ponto-chave é o modo slow motion que é o nosso aliado ao longo de todo o jogo e que nos deixa várias vezes a falar com o ecrã da televisão com um intelectual: “Embrulha!”. No entanto, o original sofria de um desenho de níveis extremamente repetitivo e desinteressante.

Já F.E.A.R. 2, confesso, é um dos melhores shooters que já joguei até hoje. Toda a repetição do primeiro jogo foi substituída por níveis fantásticos e variados (alguns sublimes até, como a cidade em ruínas) e tudo no jogo anterior foi melhorado, incluindo o lado paranormal que nesta incursão provoca vários arrepios na espinha, fruto de um excelente desenho de som e com um motor gráfico actualizado de um jogo de 2009. Foi com expectativa que terminei as últimas missões deste jogo, com a certeza que F.E.A.R. 3 seria aquele que iria fazer-me borrar a cueca. É aqui que começa a comédia romântica. Mas antes disso, vamos à história desta série.

One, two, Alma comes for you…

 

F.E.A.R. ou First Encounter Assault Recon (o nome de uma equipa de operações especiais treinada para lidar com instabilidades paranormais) conta a história de uma mulher que age como se lhe tivessem estragado todos os pares de sapatos e que por isso se transforma num Apocalipse de saias. Na verdade, Alma é fruto de uma experiência de laboratório, tendo passado toda a sua juventude fechada dos olhares da sociedade enquanto lhe testavam as fortes capacidades psíquicas. Ora, quando Alma deu à luz dois filhos, os investigadores tiraram-nos da mãe para continuarem as suas experiências neles e foi então que Alma se passou de vez. Foi por isso aprisionada numa câmara especial e desde aí passa o tempo a atormentar os outros na sua forma de criança. Um dos filhos é Paxton Fettel, cujos poderes psíquicos extremamente avançados permitem-lhe controlar mentalmente batalhões de clones e de quem nós passámos o primeiro jogo à procura até lhe enfiar uma bala na cabeça. Descobrimos também no final do primeiro jogo que o nosso personagem, conhecido apenas como Point Man, é o primeiro filho de Alma. Fica assim explicada a nossa capacidade de ver tudo em slow motion, mas fica por explicar porque Alma nos quer aterrorizar. Só se fomos nós os culpados com a questão dos sapatos, mas não há nada no jogo que tal indique.

No segundo jogo da série, abandonamos Point Man e seguimos a história paralela de Michael Becket, um operacional da Delta Force que é chamado para salvar uma das executivas da empresa que fazia os testes em Alma e os irmãos, numa narrativa que começa pouco antes do final do primeiro F.E.A.R. Becket é, no meio da confusão da explosão nuclear(?) do complexo Origin, estranhamente operado (e assim lá fica outra vez justificado o slow motion) no projecto Harbinger, destinado a criar soldados psíquicos como Fettel. Desta vez passamos o jogo atrás de Alma, que está ainda mais impossível e, naquele que é um dos finais mais estranhos da história dos videojogos, somos violados por ela que fica instantaneamente grávida do filho de Becket. Pai à força é pouco.

Em F.E.A.R. 3 voltamos a controlar Point Man, que se irá revelar nas sequências animadas entre missões um dos personagens com menos personalidade da história dos videojogos, mas desta vez com a companhia do espírito do nosso irmão Fettel. Alma está prestes a dar à luz em parte incerta e, com esse parto, iniciar catástrofes bíblicas de destruição do mundo. É nossa missão chegar até à nossa mãe, contra tudo e contra todos e mais não podemos dizer para não estragar a história (embora não esperem muito dela).

Isto é o que acontece quando se mexe nas coisas de uma mulher.

 

Chegamos desta forma a F.E.A.R. 3 com a expectativa de estarmos perante o próximo passo para a frente. Mas deparamo-nos com um passo atrás, aliás, com um passo em direcção incerta. A mudança de produtora, da Monolith para a Day 1 Studios sente-se logo no menu de entrada do jogo, onde falta a subtileza e a contenção visual do título anterior e assim que arrancamos a campanha entramos num território desconhecido e doloroso para os fãs da série, onde tudo o que se mantém está pior e onde tudo o que é novo parece uma cópia. O jogo divide-se como o anterior em 8 intervalos, ou missões, cada um num local específico. Logo nos primeiros segundos, aprendemos que estamos de regresso ao nosso Point Man mas que desta vez somos acompanhados pelo espírito do nosso irmão Fettel que irá estar constantemente a falar-nos na nossa cabeça. Uma das primeiras coisas que percebemos também é que qualquer medo que pudéssemos vir a sentir, não tem qualquer razão para existir. A forma como F.E.A.R. 3 nos tenta assustar é tão ridícula que chega a ser deprimente assistir a mais uma aparição da qual já estávamos à espera enquanto a PS3 ligava.

F.E.A.R. 3 começa por ser também um jogo que não se decide. Os primeiros cenários parecem imitações de algumas incursões de Modern Warfare; a forma demasiado rápida e impossível de acompanhar como vão chegando os constantes achievements é similar aos modos multijogador de vários outros shooters; os inimigos perderam a inteligência dos outros jogos e são carne para canhão que tanto podia estar aqui como em qualquer jogo em que os países de leste estivessem descontentes com o mundo; as armas são copy paste de todas as outras que já vimos. Isto para não falar na voz de Fettel na nossa cabeça que, a esse sim, apetece dar um tiro para se calar. Ao longo do jogo, esta falta de personalidade vai-nos acompanhando nos cenários, onde tudo está demasiado estereotipado e parece saído das mãos de uma equipa de designers juniores a copiarem todas as suas referências. Já vimos tudo aquilo, em tantos outros jogos.

Os momentos de horror são uma oportunidade perdida. No terror psicológico aplica-se a norma do design “Less is More” (mais com menos) mas F.E.A.R. 3 atira-nos para os ouvidos com tudo o que é som fabricado para assustar e com tudo o que é imagem criada para o mesmo efeito. É tanta coisa usada ao mesmo tempo que a única coisa que sobra é o aborrecimento. Alguns níveis como os subúrbios poderiam ser alguns dos momentos mais terríveis. Andar no interior das ruínas de uma casa, coberta de velas e desenhos com sangue nas paredes, no silêncio total e depois ouvir passos a correr no andar de cima pode ser aterrador. Estar a ouvir acordes irritantes em loop, mais grunhidos, mais gritos, mais sussurros e depois então ouvir os passos no andar de cima não é de todo aterrador. Isto é o horror em F.E.A.R. 3 . Assustadoramente mau. Não que não existam alguns bons momentos, como o cenário da loja e os Cultists com bombas suicidas atrás de nós, a primeira luta contra um mech, a área das carnes no matadouro e o cenário da rua com buracos no chão que se abrem e engolem autocarros, postes e tudo o mais, mas é demasiado pontual e sempre com um pormenor que estraga tudo, como os Cultists sem bombas. Os primeiros níveis numa prisão, numa favela, num armazém, nos subúrbios de uma cidade e na cidade em si, não deixam grandes memórias e, sinceramente, apetece desligar a consola e trocar para outro jogo mais interessante. Mais uma vez, já vimos tudo isto em qualquer lado.

Qualquer semelhança com Modern Warfare, Battlefield ou Crysis é pura realidade.

 

Porém, quando já estava preparado para uma análise em que só poderia escrever defeitos, eis que se dá a reviravolta de comédia romântica e eu começo a engraçar com o jogo. Durante os últimos minutos do intervalo 05 (Tower) começam a aparecer bons momentos e, finalmente, armas com personalidade como as excelentes G3A3 e S-HV Penetrator (a imprescindível espingarda de pregos) e inimigos desafiantes como os Phase Soldiers. Quando chegamos ao excelente Intervalo 06 (Bridge), que começa nos destroços de um comboio numa ponte, o jogo finalmente apanha o seu rumo. Daqui para a frente voltamos a ter a possibilidade de entrar no interior de um Mech, como em F.E.A.R. 2, só que desta vez não é apenas diversão e chacina de pequenos homenzinhos verdes, pois enfrentamos outros Mechs tão ou mais fortes que o nosso. O intervalo 07 num aeroporto mostra o que seria o melhor de F.E.A.R. 2, agora com mais acção e com alguns momentos que chegam a causar ligeiros arrepios ou que ficam na memória, como a passagem por Alma na passadeira rolante. Por outro lado, o sistema de ranking com 21 níveis de rank possíveis, no qual vamos progredindo ao longo do jogo e que vai desbloqueando novas capacidades como mais tempo de slow motion, recuperação mais rápida da saúde do personagem, capacidade de transportar mais carregadores nas nossas duas armas, entre outros, está agora num nível que permite desfrutar muito mais do combate e arriscar ofensivas mais descaradas e mais divertidas. É então no final do jogo que percebemos que F.E.A.R. 3 não é para ser jogado passo após passo, a espreitar a próxima esquina, à espera de uma alma penada. F.E.A.R. 3 é para ser jogado à Rambo, a descarregar armas em corrida sem pensar duas vezes. E quando chegamos ao Intervalo 08 e ao final, fazemos as pazes com o jogo para então descobrirmos que o melhor ainda está para vir. Um conselho, ver os créditos até ao fim pode conduzir a recompensas e mais não digo.

O novo MechBook Pro.

 

Ao terminarmos a campanha, podemos voltar a repetir o jogo, mas agora na pele de Fettel. É então que F.E.A.R. 3 começa realmente. Os poderes psíquicos permitem-nos levantar inimigos no ar, faze-los explodir como animais no micro-ondas (nenhuns animais foram maltratados durante esta análise) e aquela que é a cereja no topo do bolo, possuir o corpo de um dos nossos inimigos e desatar a disparar enquanto o resto da equipa ainda está a tentar perceber o que aconteceu. Assim que descarregamos a nossa arma, é esperar a nossa regeneração psíquica e entrar noutro corpo com o arsenal carregado. Assim que o corpo que habitamos perde toda a energia, mais uma vez é só escolher o senhor que se segue. Assim que identificamos um sniper numa varanda a vários metros de distância e o levantamos no ar, para depois viajarmos rapidamente ao interior do seu corpo e desatar a escolher as cabeças que vão saltar lá em baixo, percebemos porque 30 anos depois ainda continuamos com comandos nas mãos. Aquele que era um jogo extremamente irritante torna-se num shooter sólido e extremamente divertido.

Depois temos a campanha em modo co-op que duplica a diversão. Joguei com um desconhecido qualquer online, com os microfones desligados, mas cedo nos entendemos e de vez em quando ele levantava soldados do chão e oferecia-mos de bandeja para os metralhar no ar. Sem nos conhecermos e sem falarmos, jogámos 5 horas seguidas de campanha, o que demonstra o gozo que dá este modo difícil de largar. Imperdível.

O Sexto Sentido meets A Fúria do Herói

 

Os modos multijogador também estão bastante sólidos. Existem quatro modos: Contractions é um modo de horda em que vão chegando vagas de inimigos e onde com a nossa equipa temos que garantir a segurança de um local, reconstruindo as barricadas que os inimigos vão destruindo; Soul King é um divertido modo em que somos espíritos e temos que possuir inimigos bots para com eles tentar destruir os outros jogadores, naquele que é uma original variação aos modos capture the flag (imaginem estar longe do vosso inimigo e projectarem-se para o soldado bot que está exactamente atrás dele). Tanto em Contractions, como em Soul King, a Alma deambula pelos níveis na sua forma de criança e se olharmos para ela ficamos sem ver nada por uns segundos em mais uma implementação original. O modo Soul Survivor é uma reviravolta a Contractions e ao género de Horda em si. Enquanto tentamos defender o nosso forte, Alma passeia pelo nível até escolher um de nós para então nos transformar num elemento corrupto. A partir daí a nossa missão é corromper outro companheiro e assim sucessivamente até todo o nosso squad estar corrompido, para depois retomarmos a matança de inimigos original. Finalmente, o modo mais inovador é F**king Run (literalmente), onde temos que fugir de uma enorme parede de fumo com caras demoníacas incrustadas que vai sempre ganhando terreno atrás de nós e onde temos de matar todos os inimigos que nos forem aparecendo à frente pelo caminho. Assim que um dos elementos da squad for apanhado pelo fumo, todos perdem o round, naquele que é um entre a espada e a parede cheio de gargalhadas. Alerto no entanto para o facto de Soul Survivor e F**king run precisarem de um código season pass. Por isso, se compraram o jogo em segunda mão vão ter que desembolsar quatro euros para aceder a estes modos. Mas, sinceramente, não façam isso. É que F.E.A.R. 3 possui um problema enorme no multijogador. Está praticamente vazio. Esperam-se horas por um jogo e, mesmo que seja a uma sexta ou sábado à noite, não contem com mais de 5 pessoas num mapa. A maior prova de que o multijogador de F.E.A.R. é um local vazio e inóspito é o fórum oficial do jogo estar encerrado, com o último post de Setembro de 2011. É uma pena, pois é um grande multijogador e, este sim, com muita personalidade.

É a partir deste momento que percebemos que foi preciso esperar um jogo inteiro para ter um jogo de jeito.

 

F.E.A.R. 3 constituiu uma das relações mais ambíguas que já tive com um videojogo. Comecei por odiar o jogo, depois fui aos poucos fazendo as pazes com o mesmo e acabámos bons amigos. Ao contrário das normais relações amorosas, onde antes só via defeitos passei a ver virtudes. É certo que este jogo me obrigou a descer o volume da música nas opções de tão irritante que é, que os sons que deviam trabalhar o ambiente só servem para distrair dos bons momentos e que as características e o desenho de níveis da primeira metade são tudo menos originais. Mas a partir do último terço F.E.A.R. 3 torna-se um shooter sólido e assim que desbloqueamos Fettel torna-se um grande jogo e um dos mais divertidos shooters que já joguei. O modo cooperativo vale por si só o preço do jogo e é uma pena que não esteja praticamente ninguém no multijogador, pois aí as ideias são fantásticas. Quanto ao terror psicológico dos primeiros dois jogos, esqueçam, pois essa abordagem é aqui um falhanço total e a oportunidade perdida de fechar a série em beleza. A história mostra que pode continuar mas, por favor, chega. Quando tiverem F.E.A.R. 3 na mão e estiverem reticentes se devem adquirir ou não este jogo, tenham medo, tenham pouco medo.

 

(versão analisada: PS3) (também disponível para Xbox 360 e PC)