Vamos lá salvar o mundo, mais uma vez.

Depois da experiência épica que foi salvar uma nação – e, por extensão, um mundo inteiro – de uma horda de seres malignos determinados a destruir toda a civilização conhecida e  liderados por um demónio, aproveitando pelo caminho para coroar reis e rainhas, decidir o destino de raças inteiras e ainda namorar um bocadinho, fiquei tudo menos feliz quando soube que o Dragon Age II se passava todo na mesma cidade e se baseava em decidir entre magos e Templários durante 10 anos.

Nada disto me impediu de encomendar a edição limitada, obviamente.

Ainda antes do jogo começar temos, como de costume, o écran de selecção de personagem. Enquanto que, no Dragon Age: Origins, tínhamos a opção de escolher entre elfos, anões e humanos, nobres, magos e nómadas, entre outros, desta vez o máximo a que temos direito é a escolher o sexo e ocupação da personagem. Estamos a jogar com o/a Hawke, que é humano/a, e não com um qualquer futuro Champion, como era o nosso Warden. Nota-se a aproximação a Shepard e a Mass Effect nesta abordagem, que lhes poupa umas horas valentes de desenvolvimento e mais um bocadinho de espaço no Blu-ray. Há lugar a um momento de pânico quando escolhemos o personagem e somos logo brindados com a introdução. Mas… o que aconteceu à costumização? Vou ter de passar o jogo inteiro com um aspecto que não escolhi? Nem sequer tenho nome próprio! E todas as horas passadas a jogar Dragon Age: Origins não influenciam nada? Vemos então um anão – estranhamente barbeado – a ser arrastado para uma cadeira e intimidado a contar “tudo”. É a deixa para o logotipo de Dragon Age II nos atirar para o calor da batalha, surpreendentemente fácil. Dois ou três minutinhos depois lá percebemos o porquê de termos limpo o chão com os nossos inimigos quase sem termos tentado: a história que o anão conta (a nossa) estava um bocadinho exacerbada. E lá temos finalmente o écran mágico onde podemos importar o nosso save do DA:O (ou escolher uma de três histórias predefinidas), ficar com a aparência que quisermos, mudar de nome, retrato e tomar café enquanto o anão começa do princípio, desta vez (quase) sem exageros. Para quem teme que o narrador apareça de cada vez que o/a Hawke decidir ir à casa de banho, pode ficar descansado: o jogo divide-se em três actos, que correspondem a períodos distintos de tempo. Só temos um cheirinho de narração entre eles, mais um ou dois momentos a meio de um acto. Até dá para nos esquecermos de que estão a contar a nossa história, em vez de a estarmos a viver.

A história do jogo foi talvez melhor planeada para agradar a quem é novo na série, do que para satisfazer jogadores do Origins.  Há piscares de olho a algumas das decisões que tomámos (não os suficientes, na minha opinião), e personagens que já conhecemos que resolvem aparecer. Mas não esperem que o jogo respeite todas as decisões que tomaram no save que estão a importar. Não esperem sequer que a morte seja uma coisa permanente – há personagens que morreram no DA:O mas depois curaram-se. É injusto queixar-me disto numa análise ao Dragon Age II, contudo, já que podíamos matar o Oghren no DA:O e ele aparecia todo contente no Awakening à mesma. Parece que o nosso Warden afinal era um incompetente, conseguia matar Archdemons, mas companheiros só atordoava, mesmo quando lhes cortava a cabeça. Já para quem nunca jogou Dragon Age, e da maneira como está escrito – numa cidade-estado separada do sítio onde se desenrolava DA:O por um oceano, e com uma tensão interna que faz com que os problemas externos sejam completamente insignificantes para quem lá vive – era perfeitamente possível começar pelo DA:II e depois então querer jogar o DA:O sem grandes spoilers. A maioria das coisas que se passam no primeiro jogo não chegam aos ouvidos de quem vive em Kirkwall, e as que chegam são basicamente rumores.

Tal como mencionei no parágrafo anterior, encarnamos o/a Hawke, um(a) humano/a que foge com a mãe, o irmão e a irmã, da cidade de Lothering, onde exércitos de darkspawn, malignos e terríveis, matam tudo o que mexe. A esperança é conseguirem chegar a Kirkwall, de onde é oriunda a mãe, e viverem felizes para sempre. “Felizes para sempre” resulta como seria de esperar no início de um jogo, ou seja, as dificuldades vão ser mais que muitas.  Tirando os primeiros dez minutos, o jogo passa-se, de facto, todo em Kirkwall, e na área envolvente de Sundermount. Podemos explorar a cidade de dia ou de noite, e Sundermount apenas de dia, tendo em atenção que determinadas missões só podem ser feitas na altura do dia apropriada, enquanto que outras estão disponíveis a qualquer hora. Há ainda umas quantas que têm de ser feitas num intervalo temporal específico ou deixa de ser possível completá-las. A reutilização de cenários é, quanto a mim, o ponto mais baixo deste jogo. Obviamente que, se é sempre a mesma cidade, o aspecto não pode ir mudando radicalmente – Lisboa é Lisboa, afinal, e se há prédios novos e outros que são demolidos, ninguém espera que o Chiado se mude para Telheiras – mas o problema no Dragon Age II é que todas as infelizes cavernas que rodeiam Kirkwall são iguais umas às outras – a Bioware pensou que bastava bloquear zonas diferentes em cada uma no mapa para nos fazer sentir que não estávamos a explorar a mesma caverna com outro nome vezes sem conta. Já as casas da cidade, especialmente as mansões, o forte onde trabalha o Visconde, a Chantry e o bordel foram todas desenhadas pelo mesmo arquitecto, e num dia em que o desgraçado estava em modo de copy/paste de plantas, com certeza. Assim como se decidíssemos ir passear ao Colombo, depois fôssemos às Amoreiras e ainda passássemos pelo Forum Picoas e fossem todos exactamente iguais. Palácio da Pena? Castelo dos Mouros? Chapa 5! Não se percebe o porquê desta decisão, nem o da de lançarem o jogo a correr. Se o tivessem adiado um aninho e nos tivessem dado mapas decentes e diversos, estávamos todos mais satisfeitos.

O meu filho de 5 anos: Mamã esse Dragon Age está um bocadinho estranho, parece Power Rangers!

 

As cutscenes estão mais cinematográficas, com ângulos de câmara apropriadamente épicos e dignos de qualquer filme de acção. No interesse de manter o tal aspecto cinematográfico, o nosso personagem principal já fala. Até aqui parecer-me-ia bem, não fosse o terem reduzido as 5 ou 6 respostas possíveis que tínhamos com um personagem mudo no DA:O, e que nos permitiam elevar o roleplay mental a níveis muito mais detalhados, a três opções que correspondem a personalidades distintas: diplomata, irónica e agressiva. E, não contentes com isso, – mais uma vez a la Mass Effect – agora o que escolhemos não corresponde textualmente ao que dizemos, o que pode dar origem a algums reloads já que nem sempre o tom indica suficientemente bem as palavras que acabam por sair da nossa boca. Nunca pensei vir a dizer isto, mas o mudo expressava-se muito mais eloquentemente que o falador. Os saves e loads são indiscutivelmente mais rápidos, chegando a poder ser feitos em simultâneo quando gravamos e mudamos de área.

Há troféus para todos os gostos e dificuldades, mas a Bioware peca por, quase 11 meses depois do jogo ter saído, ainda não ter resolvido bugs como o que aumenta artificialmente a dificuldade de conseguir o troféu Supplier, por exemplo. Tendo em conta que havia dois ou três encontros que deveriam ter acontecido no DA:O e que não havia maneira de despoletar (para não falar que jogar o Awakening sem um FAQ sobre como contornar bugs, que nos faziam perder um terço das interacções importantes com o resto da party, era como jogar roleta russa) e que, mais de dois anos depois, ainda não viram solução, não posso dizer que esteja surpreendida. O sistema de combate está mais fluido do que no DA:O, e visualmente mais elaborado, com saltos dignos de qualquer acrobata de circo com tendências suicidas, mas faz também menos sentido. Os inimigos vêm em vagas e se, em certos sítios, pode ser compreensível (como em zonas da cidade em que teriam onde se esconder) noutras é simplesmente risível vê-los a materializar-se.  Pensemos que aparecem do nada por obra e graça do Maker, a divindade monoteísta de serviço, se formos devotos.

Por outro lado temos uma árvore de talentos (onde podemos ir aprendendo feitiços, se formos magos, ou abilidades no caso de rogues e warriors) bem conseguida, sem nos obrigar a escolher dois ou três talentos que não queremos só para chegar a outro; normalmente, há mais do que um caminho para chegar ao mesmo sítio. O/A Hawke tem direito ainda a escolher duas árvores de especialização de entre três, com o resto dos membros da party sem se poderem especializar, mas a terem cada um uma árvore pessoal e intransmissível além das comuns. Para grande frustração minha, não é possível trocar as armaduras dos companheiros (há mesmo um que nem sequer pode trocar de arma); gostam de jóias – podemos equipar-lhes os acessórios que quisermos entre anéis, cintos e amuletos –  mas nem pensar em mexer-lhes na roupa a não ser que seja para lhe fazer updates praticamente invisíveis. Pelo menos o/a Hawke tem agora a capacidade de esconder o capacete, e pode andar devidamente protegido sem ter necessariamente de se passear pelas ruas com um penico enfiado na cabeça. Visualmente, tentaram simplificar tanto que fizeram asneira. Não me entendam mal, o aspecto da maioria dos personagens está melhor, a arte que se vê nos écrans de load adequa-se perfeitamente ao jogo, mas é aí que se me acabam os elogios. Os icons dos troféus e talentos, tão deliciosamente detalhados no DA:O, foram estilizados ao ponto de parecerem logotipos. Estou a jogar um jogo de fantasia, senhores, não a tentar fazer branding de uma multinacional – espero um nível de detalhe apropriado. Ah e, já agora, era assim tão difícil darem nomes aos acessórios? Tenho 30 Amulets e 10 Ornate Amulets, e todos fazem coisas diferentes.

Notam um padrão nestes últimos parágrafos? É como se a Bioware, pelo menos na inevitável comparação com o DA:O, tivesse passado metade do desenvolvimento a pensar “cravo, ferradura, cravo, ferradura, gregos, troianos, embelezar, simplificar” e por aí em diante. Não que eles não estejam cientes disto; temos inclusivé um NPC que nos pergunta se não sentimos que o mundo se está a tornar mais simples em tudo, desde lutar a comer.

Os Qunari correm para, erm... satisfazer uma exigência do Qun.

 

Voltando ao cravo (ou será à ferradura? Estou com dificuldade em situar-me na minha própria metáfora), os romances estão claramente identificados com um ícone de coração, portanto não corremos o risco de nem sequer sabermos que estamos envolvidos com alguém. Existem quatro, disponíveis para ambos os sexos, mais um do Exiled Prince (DLC a que todos os que compraram a Signature Edition do jogo têm acesso gratuitamente) que é exclusivamente heterossexual. Também já não é preciso sermos amigos dos nossos companheiros para que eles nos respeitem, ou estejam receptivos aos nossos avanços amorosos: agora podemos ser rivais e obter o mesmo resultado, com direito a diálogos diferentes nas cutscenes.  Há duas ou três prendas por companheiro mas não granjeiam amizade nem rivalidade só por si – são as nossas escolhas nos diálogos que o fazem.  As relações, tanto de amor como de amizade, ficaram reduzidas a três, quatro conversas, com os companheiros por acto, mas são tão profundas e detalhadas como as melhores do DA:O. Vemos os nossos companheiros evoluir (ou, nalguns casos, deteriorarem-se) à medida que o tempo passa, e podemos ligar-nos a eles porque são mais do que personagens bidimensionais a quatro cores. São complexos, desafiantes , intrigantes, por vezes enfurecedores mas sempre merecedores da nossa atenção. Todos, quero eu dizer, menos o companheiro extra que vem com o Exiled Prince. Esse pobre coitado, de seu nome Sebastian, tem uma história que poderia ter um conflito interessantíssimo, entre família, dever e fé, mas que está feita de maneira tão entediante que, francamente, só o continuo a recrutar porque sou uma completista obssessiva. Custa a acreditar que foi escrito pela mesma equipa.

Outra das decisões incompreensíveis da Bioware foi a de fazer um transplante de personalidade à Merrill, uma das nossas companheiras aqui no DA II que quem jogou a origem de Dalish elf no DA:O já teve a oportunidade de conhecer. É extraordinário como ela passa de uma mulher confiante e independente nos minutos em que a vemos no primeiro jogo a uma rapariga nervosa e ingénua. Não é de falta de complexidade que me queixo, mas de um caso claro de identidade trocada. Francamente, para que raios lhe chamaram Merrill? Custava muito terem-lhe dado outro nome qualquer, já que não há nada de reconhecível na personalidade dela de um jogo para o outro?

Um dos possíveis romances, com direito a olhar intenso e passado trágico.

 

Vão ser precisas umas valentes horas de jogo para que a minúcia do dia a dia que é ser Hawke, com uma série de missões aparentemente insignificantes, comece a revelar que é parte de um todo. Só perto do final vamos dizer “Olha! Tenho estado a olhar para esta árvore e afinal faz parte de uma floresta inteira!”, mas isso faz parte da beleza do jogo. À medida que vamos avançando começam a surgir as tais decisões de magos contra Templários. E, inesperadamente, vemos que julgámos mal a coisa. Kirkwall dá-nos inúmeras razões para detestarmos os Templários, algumas das quais de família, e dá-nos outras tantas para não conseguirmos suportar os magos, mesmo quando somos um deles. Torna a coisa pessoal a cada passo do caminho, e as decisões que vamos tendo que tomar fazem-nos desejar que tudo fosse tão linear como matar um Archdemon. Aqui não temos a aconchegante sensação de estar a fazer o Bem ou, se decidirmos ser mauzinhos, não podemos deliciar-nos com a nossa (im)Pura Maldade.  Há vilões nos dois lados da equação – heróis são mais raros de encontrar, mas também os há – e por cada momento em que temos a noção da escolha “certa” e da “errada” temos dezenas de situações cinzentas e moralmente ambíguas. Matar seres fundamentalmente malignos é fácil – afinal de contas  os darkspawn nunca tiveram famílias e amigos, sonhos e esperanças -, mas estes magos e estes Templários são pessoas, algumas com as melhores das intenções a cometerem os piores dos actos. Dizer que o Dragon Age II é um jogo onde andamos a decidir entre magos e Templários é mais ou menos como dizer que a segunda guerra mundial se deveu a um senhor baixinho com mais carisma que auto-estima. Acertado, mas infinitamente redutor.

O Dragon Age II é um jogo sobre escolhas impossíveis, sobre perda e vitórias pírricas, sobre família e amor. Só depois de o acabarmos pela primeira vez compreendemos de facto a magnitude da viagem emocional que fizémos. E, apesar de sabermos que vamos voltar a vociferar contra as cavernas e as mansões exactamente iguais, a amaldiçoar o dia em que a Bioware resolveu implementar a malfadada roda de diálogo na série Dragon Age e a querer estrangular quem decidiu que metade dos anéis do jogo se deviam chamar Ring, damos por nós a querer fazê-la outra vez.

Em suma, Dragon Age II é um rpg consistente, com conteúdo suficiente para agradar aos mais exigentes, mas que arrisca a alienar quem tenha jogado o primeiro e esteja à espera de mais e melhor do mesmo. Os cenários podem repetir-se ad nauseum, a nossa personagem pode nem sempre dizer o que pensávamos que tínhamos escolhido, os ícones podem ser lineart puro, e os nossos companheiros podem vestir a mesma roupa durante dez anos, mas todas estas queixas parecem insignificantes quando comparadas com o que a Bioware conseguiu de magnífico neste jogo: a profundidade das relações com os companheiros, auxiliada por expressões faciais bem conseguidas; a complexidade das escolhas, que têm ramificações nem sempre esperadas; a riqueza da história que tece uma teia subtil da qual só nos apercebemos quando já estamos capturados. Aliás, a subtileza do todo é simultaneamente ponto forte e ponto fraco, já que só quem decidir continuar a jogar, apesar de pensar que não está a contribuir grandemente para a história, é que vai poder chegar suficientemente longe para a apreciar. 

(Versão analisada: PS3. Também disponível em PC e Xbox360)