Há ano e meio atrás, estava eu alegremente a jogar o Final Fantasy XII, depois de ter acabado o XIII (e não, não me enganei no que escrevi, joguei mesmo o XII depois do XIII) quando o meu marido, fã confesso de shoot ‘em up, trouxe para casa o Mass Effect 2. Para terem uma noção espacial da coisa, tenho as consolas todas na sala, e o lcd está lado a lado com uma televisão um pouco mais pequena e bastante mais velha, o que nos permite jogar em consolas e televisões diferentes ao mesmo tempo. O que acontece a seguir na história, segundo o que me dizem, só é possível porque sou mulher, já que aparentemente os homens não se dão muito bem com multitasking: enquanto jogava o meu Final Fantasy, fui ouvindo o início da história. Normalmente as histórias dos shoot ‘em up não merecem a minha atenção, mas este estava a deixar-me curiosa. Era então um tipo a acordar de uma espécie de coma, ainda meio grogue, enquanto uma voz se fazia ouvir através de um intercomunicador e lhe dizia quem ele era e o que devia fazer. Comecei logo a intrometer-me.

– Hmm, será que ela está a dizer a verdade? Na volta és outra pessoa qualquer em vez desse Shepard e a sujeita está a manipular-te à grande e à francesa. Isso tem imensa conversa para shoot ‘em up.

– Não, sou mesmo o Shepard porque isto é o Mass Effect 2, já houve um 1. E isto não é shoot ‘em up, é RPG.

Algures por esta altura comecei a salivar.

– RPG? E já houve um 1 como, tipo Final Fantasy em que os números não querem dizer nada, ou um 1 como deve de ser?.

– Um 1 com o mesmo Shepard, a história antes disto, se tivesse o save até dava para importar.

Se tivesse uma foto minha com os olhos esbugalhados como fiquei na altura juro que a inseria aqui, só para verem o meu ar de parva. Então havia um jogo inteiro com o mesmo personagem principal e ele começava pelo 2? Como quem começa o Senhor dos Anéis pel’As Duas Torres? Estava tudo doido.

– Então pára de jogar e vamos comprar esse 1, primeiro!

Lá se levantou ele para ir espreitar ao youtube qualquer coisa sobre o ME1 (Mass Effect 1), e voltou com um ar pouco convencido.

– Ah e tal não vou gostar tanto do sistema de combate, ah e tal os gráficos não são tão bons, ah e tal mas já comprei este e o outro ainda não o tenho…

– Ah e tal nada, ah e tal a história, ah e tal o personagem importado. Vamos já ao Dolce Vita ou ao Colombo comprar o 1.

E, apesar do desgraçado não fazer questão nenhuma de jogar o Mass Effect 1 na altura, lá pegou no carro e fomos buscá-lo, porque ser casado significa aceitar a opinião da nossa mulher quando ela nos diz que não se começa um RPG pelo meio.

Já com o jogo na mão, pensei que a coisa ia ficar por ali para mim. Ele que o jogasse e eu espreitava a história. Podia ser um RPG, mas tinha um sistema de combate em tempo real, e nunca gostei de disparar. Ainda se fossem espadas, ou sabres de luz, mas pistolas? Meh. Claro que o que aconteceu na realidade foi outra coisa, ou não estaria aqui a fazer esta introdução quilométrica. O que de facto aconteceu foi que dei por mim a deixar de lado o meu comando da PS2 e a converter-me em treinadora de sofá, pronta a pesquisar no portátil todas as coisas opcionais que o meu marido *tinha mesmo que fazer*. Sim, porque por vontade dele, tinha jogado o jogo a correr só para chegar ao tão cobiçado ME2. E dei por mim a desejar cada vez mais poder jogá-lo, mas convencida que ia morrer nos primeiros dois minutos de combate. Como se não bastasse, as decisões que o meu marido tomava nem sempre coincidiam com aquelas que eu queria que ele tomasse (apesar de eu ter tentado – e, nalgumas ocasiões notáveis, ter conseguido – manipulá-lo nesse sentido). Quando finalmente não aguentei mais, inspirei fundo, entrei na Xbox 360 com o meu perfil, pus a dificuldade em casual e comecei a jogar. Ou a fazer algo que se lhe assemelhava tanto quanto possível, tendo em conta que não conseguia apontar a arma como era suposto e ignorava completamente o significado da palavra cover, a não ser que se aplicasse à música. Mas afinal o ditado estava certo: praticar levou mesmo à perfeição, e levou a que conseguisse jogar tranquilamente em Insanity, porque nunca conheci achievement de um jogo que gostasse e que não quisesse ter na minha lista. Não consigo explicar a fundo a alguém que não me conheça o quão monumentalmente magnífico o Mass Effect teve de ser para me cativar desta maneira, para me fazer esquecer que detesto armas (Tomb Raider não conta) de um modo quase visceral, para me fazer esquecer que estava a meio de um Final Fantasy ao nível dos melhores que já joguei, para me fazer planear logo à partida uma série de playthroughs porque esta, aquela e a outra decisões tinham mesmo de ser jogadas com Shepards diferentes. Mas acabei de falar muito e não dizer assim tanto. Vou tentar recomeçar.

É isto que acontece se tentarem carregar a Mako com um transformador mais potente do que o recomendado na embalagem.

 

O Mass Effect 1 é um RPG com elementos de shooter: subimos de nível, ganhamos pontos que podemos gastar em novos poderes ou a melhorar os que já temos, e simplesmente observar pela primeira vez o que nos rodeia traz-nos experiência (leia-se: xp). Podemos ser uma de seis classes, podemos usar armas que não pertençam à nossa classe (com muito mais dificuldade e muito menos sucesso), compramos e melhoramos armas e armaduras para a party inteira, e podemos vender o equipamento que já não quisermos. As armas podem sobreaquecer e, se o fizerem, não podem voltar a ser usadas durante alguns segundos, para que arrefeçam. Também os poderes têm um tempo de espera respeitável, mas podemos ir usando uns, enquanto esperamos que os outros voltem. Existem vantagens e desvantagens de cada armadura, mas há claramente duas que são topo de gama, que só começam a aparecer quando já atingimos um certo nível. Os achievements variam entre o fácil e o irritante, este último sendo quando temos de usar cada poder X vezes, mas só o podemos fazer com o/a Shepard, o que obriga a ter vários personagens, porque classes diferentes têm acesso a poderes diferentes. Os ecrãs de load vêm mascarados de elevadores que nunca mais acabam, mas dão direito a ouvir conversas memoráveis entre os nossos companheiros. Andamos de carrinho (quase) telecomandado a explorar planetas áridos ou montanhosos, gélidos ou tóxicos, para podermos encontrar depósitos de minerais que se extraem com um mini-jogo que consiste em carregar nos botões certos e que são das poucas fontes iniciais de rendimento que o/a Shepard tem. Isto de ser Comandante e Spectre (e Última Esperança da Humanidade, mas quem é que tem pachorra para se lembrar dos cargos todos?) é surpreendentemente menos rentável do que seria de esperar. Temos cacifos trancados estrategicamente colocados numa série de sítios que podemos destrancar com o tal mini-jogo e que contém mais equipamento e, se numa fase inicial andámos a contar tostões, lá para o meio do jogo, especialmente se já o tivermos acabado uma vez, já não sabemos o que fazer a tanto dinheiro. Se não conseguirmos abrir os cacifos com o mini-jogo podemos sempre usar medigel, que é um gel que redefine o conceito de multifunções: reanima companheiros caídos em batalha, serve para olear fechaduras desobedientes, para fazer hacking a computadores e, provavelmente, deve ser usado como lubrificante nas festas mais loucas abordo da Normandy.

Tremam de terror – vêm aí as lulas, e estão furiosas!

 

E a história? Versa assim: 35 anos antes do início da história do primeiro Mass Effect, a Humanidade descobriu em Marte um depósito de tecnologia alienígena que lhe permitiu num curto espaço de tempo alcançar velocidades mais rápidas que a da luz. Sabiam que a curiosidade tinha morto o gato mas, como não eram gatos, não se preocuparam com isso e decidiram que era altura de explorar como deve ser o sistema solar. Um anito mais tarde descobriram que a lua de Plutão afinal não era uma lua (a lua que afinal não é lua do planeta que afinal não é planeta – alguém na Bioware gosta de simetria) mas sim um Mass Relay, uma espécie de portal que permite viajar de maneira instantânea para qualquer um de uma rede de outros Mass Relays, a anos-luz de distância, desde que estejam em funcionamento. Menos de uma década depois, ao experimentarem activar um Mass Relay, foram interpelados por uma raça, os Turians, que não achou grande piada à leviandade com que os humanos insistiam em ignorar o destino do gato; tivemos um confronto militar que durou três meses e culminou com a intervenção do Concelho, revelando assim à humanidade a existência de outras raças que já há milhares de anos viajavam no espaço e comunicavam entre si. Havia um centro de poder galáctico, a Citadel, e foi-nos dado o direito a ter lá uma embaixada para representar os nossos interesses.

Quando o jogo começa temos precisamente um desses Turians, o Nihlus, a bordo da Normandy, a nave onde servimos sob o capitão Anderson, e não é um Turian qualquer mas sim um Spectre, um membro de uma organização de elite que opera directamente sob a autoridade do Concelho. Percebemos rapidamente, se passarmos uns minutos a falar com os membros da tripulação da Normandy, que o racismo e a xenofobia ainda são presenças muito fortes quer do lado dos humanos, quer do lado das outras raças – parece que evoluir tecnologicamente não é sinónimo de evoluir em termos de mentalidade, o que é lamentável. Aterramos numa colónia humana onde foi descoberta uma relíquia do tempo dos Protheans, uma raça que foi extinta há 50000 anos e que se acredita ter criado os Mass Relays e a própria Citadel, e separamo-nos do Nihlus, que resolve ir investigar noutra direcção o que se passa na colónia. Longe do olhar do/a Shepard, mas não longe da câmara nem do olhar aterrorizado de um membro humano da colónia, aparece Saren Arterius, outro Turian que também é Spectre. Cumprimenta o Nihlus como amigo e, assim que o outro vira costas, executa-o com um tiro na cabeça. Entretanto o/a nosso/a Shepard luta contra umas criaturas humanóides que mais parecem os Borg, perde um membro da party, ganha outra, ouve o relato da morte do Nihlus e ainda recebe um jorro de informação da tal relíquia Prothean, uma série de imagens desconexas de morte e máquinas, não necessariamente por essa ordem, cujo verdadeiro significado não consegue ainda abarcar. Acorda na enfermaria da Normandy, e prepara-se para ir contar ao Concelho o que se passou. Este contacto inicial com o Concelho vai ser um molde para quase todos os outros ao longo da série; resumindo: vamos falar com eles, dizemos-lhes a verdade sobre seja o que for, eles não acreditam, não fazem nada, depois as coisas acontecem e é “Shepard, por favor salva-nos”. Dá vontade de lhes mostrar um dos dedos do/a Shepard, mas o jogo não permite. Passamos o primeiro terço do jogo a tentar convencer o Concelho que o Saren é, de facto, responsável pela morte do Nihlus, e vamos recrutando membros de várias raças para a nossa party; depois somos tornados/as Spectre – o/a primeiro/a Spectre humano, num momento em que ainda somos suficientemente inocentes para acreditar que isso vai significar apoio real da parte do Concelho; o Capitão Anderson dá-nos a chave da Normandy e perseguimos o Saren, que recrutou Geth (programas de inteligência artificial que funcionam por consenso e que se deslocam em plataformas sintéticas móveis – plataformas móveis com duas pernas, dois braços e armas), para lutarem do lado dele.

Temos três missões principais, que podem ser feitas por qualquer ordem, muitas secundárias que são opcionais, e uma final, como não poderia deixar de ser. Podemos ser Paragon – personalidade com muito mais ética, que acredita no valor de cada vida, que tenta ver o ponto de vista dos outros – ou Renegade – personalidade mais impiedosa, com um mesmo objectivo de cumprir as missões que tem mas convicta de que os fins justificam os meios (Podemos, inclusive, ser as duas coisas em simultâneo, se tomarmos as decisões ajustadas a um destes tipos até termos enchido a barrinha completamente e depois passarmos o resto do jogo a agir de maneira oposta. Ou podemos ser uma espécie de “nim”, em que damos uma no cravo e outra na ferradura, mas aí o jogo demonstra que não gosta de gente indecisa e não nos permite passar os momentos mais complicados com os melhores resultados). Tomamos decisões monumentais. Salvamos ou aniquilamos uma raça inteira? Um dos nossos companheiros está a tornar-se violento, conseguimos acalmá-lo, ou nem tentamos e damos-lhe um tiro no meio da testa? Temos dois companheiros à beira da morte e só podemos salvar um – quem vai ser? Qual é a nossa filosofia, promover a raça humana, ou a cooperação interracial? E somos simpáticos com os nossos companheiros, ou umas bestas insuportáveis na maneira como lhes respondemos? Apaixonamo-nos, se quisermos (só por um membro humano do sexo oposto ou por um membro de uma raça que só tem um sexo… um sexo único que só por acaso tem curvas e mamas mas, segundo a Bioware, não é uma mulher, para não terem de admitir que há homossexualidade feminina no jogo e que os homens homossexuais ficaram a ver navios. Naves, neste caso). No meio das várias missões secundárias que temos há umas poucas em que vamos desmantelando operações de uma organização chamada Cerberus, que é uma espécie de casamento profano entre o Ku Klux Klan e o Dr. Mengele, e vamos ficando apropriadamente horrorizados. Descobrimos, entretanto, que o Saren não é o mau da fita, mas apenas o peão dos maus da fita, os Reapers, naves gigantescas que vêm para aniquilar toda a vida orgânica avançada. Coisa pouca, portanto. Para variar, o Concelho não acredita que a vida lhes possa correr mal, e só quando estão a ser atacados é que se lembram de implorar ajuda – ajuda essa que podemos ou não dar, e que tem um custo em vidas humanas. O final é épico e trágico, digno do nome space opera, e até a música dos créditos é qualquer coisa de brilhante. Ficamos com a sensação de que influenciámos de facto o desenrolar dos acontecimentos, que a civilização galáctica é, em parte, o que fizemos dela.

Qualquer semelhança entre uma asari e uma fêmea é pura coincidência. Este é claramente o corpo de uma espécie com um só sexo; as nossas mentes é que são tortuosas e pervertidas.

 

Para resumir, apesar de ter já perto de cinco anos, e de visualmente já não ser o supra-sumo da batata, o Mass Effect 1 continua a ser um jogo imprescindível para quem gosta de RPGs. Aborda temas (infelizmente ainda muito) actuais, como o racismo e a xenofobia, tem uma palavra a dizer sobre o custo de ignorarmos a realidade só porque é assustadora e desconfortável, e é um jogo que faz isto tudo com um replay value impressionante, uma história extraordinariamente cativante, num universo tão detalhado como qualquer Star Wars, com um sistema de combate que se aprende com facilidade e se domina com alguma dificuldade, embrulhado numa banda sonora épica. Por fim um apelo pessoal: se só agora se iniciam na saga Mass Effect e tiverem Xbox 360 ou PC, mesmo que tenham PS3, optem por uma das duas primeiras opções. Normalmente, quando os jogos são multi-plataformas, não tenho opinião formada sobre qual é a melhor para um determinado jogo (salvo excepções em que as conversões são um festival de bugs ou uma vasta melhoria), mas a Microsoft nunca vai permitir o Mass Effect 1 na consola da Sony, e é criminoso começar a saga sem o jogar.

(Versão analisada: Xbox 360. Também disponível para PC)