Peça a peça enche a galinha o papo

Foi “apenas” há cerca de 10 mil anos que a humanidade começou a usar a terra para plantar e cultivar os seus alimentos e a domesticar os animais que depois serviriam para comer ou proporcionar lã, cabedal ou protecção. Dizemos “apenas” porque nos restantes milhões de anos da nossa evolução, a sobrevivência da nossa espécie dependia exclusivamente da caça e da recolha daquilo que íamos encontrando por aí. É este instinto primário de caçadores-recolectores que LEGO City: Undercover desperta em nós, de uma forma quase obsessiva.

Esta é uma das explicações (a psicologia terá outras) para o fascínio que não se dilui, jogo após jogo, das incursões da TT Games (TT) no mundo digital da empresa nórdica de brinquedos. A primeira vez que nos encontramos em LEGO City temos uma enorme cidade à nossa disposição, pronta para explorar livremente. Então o que fazemos? Começamos uma missão? Vamos explorar aquela montanha à distância? Apreciamos os carros que passam? Não. Começamos a destruir freneticamente o cenário e a recolher e acumular peças. Por alguma razão obscura, esta fórmula não cansa e encontra desta vez um enorme mundo aberto cheio de oportunidades de destruição e reconstrução.

A cidade que LEGO City: Undercover nos coloca à disposição é uma mistura de pontos de referência Americanos condensados num espaço pequeno. São facilmente identificáveis elementos de Nova Iorque, São Francisco, Miami, Seattle, Los Angeles e até algumas piscadelas de olho a cidades europeias como Veneza. É uma construção de clichés com um lego twist, mas que funciona e resulta numa cidade agradável na qual apetece esticar as nossas pernas de plástico.

Foi assim que aconteceu.

Foi assim que aconteceu.

 

LEGO City, historicamente, tem a sua origem numa colecção chamada LEGO Town, ou LEGOLAND Town System. Nascida no final dos anos 70, esta série tem acompanhado gerações de crianças que depois se tornam adultas (como nós), sendo renascida e reinventada ao longo das décadas. LEGO City é o último nome destas construções de bombeiros, polícias, serviços públicos, aeroportos, auto-caravanas entre muitos outros elementos que encontramos espalhados nesta edificação digital do que seria uma cidade LEGO. No entanto, infelizmente, grande parte dos elementos LEGO desta cidade são os adereços, pois os edifícios, as montanhas, os muros e a maior percentagem do cenário são modelos 3D normais sem qualquer peça no seu desenho e construção. Era bom ver mais elementos construídos em LEGO tradicional, embora aplaudimos a variedade, a quantidade e o detalhe dos elementos.

Todos os outros adereços construídos em blocos e espalhados pela cidade, transmitem uma sensação de novo mas ao mesmo tempo de nostalgia, pois encontramos elementos que atravessam todas as gerações de LEGOLAND. As árvores, os sinais de trânsito, os veículos, os transeuntes, as paragens, os comboios, todos esses elementos estão fantásticos e provocam-nos uma vontade incontrolável de os desmontar, algo que a cidade nos permite e do qual resultam muitas vezes novas construções.

Livin La Vida Loca.

Livin La Vida Loca.

 

Mas esta é também uma cidade com muitos problemas, e não estamos a referir-nos aos criminosos que o nosso herói tem de apanhar. Esta cidade tem vários problemas de mecânicas. A condução dos carros é tosca e extremamente presa. Os muitos veículos possuem um controle pouco afinado, curvam de forma inconsistente e chegam mesmo a deslizar para os lados em certas partes do cenário. Algo que deveria ser um dos elementos mais agradáveis acaba por ser um elemento frustrante e muito pouco divertido o que é imperdoável numa cidade “caixa de areia”. O mesmo se pode dizer de muitas outras mecânicas que falham. Desde a rotação de câmara extremamente lenta e presa; à impossibilidade de correr mais depressa nos cenários; ao lento desaparecimento das peças destruídas que se tornam obstáculo; até ao combate demasiado simples e extremamente repetitivo e incongruente, o jogo apresenta muitas falhas imperdoáveis.

Imperdoáveis porque mesmo sendo um jogo para crianças este não é um problema de simplificação de uso. Este é um problema de falta de afinação, o que na realidade até poderá ser um empecilho para os mais novos. Não existir por exemplo qualquer música no interior dos carros, ou muito poucas vozes nas ruas não é nada que simplifique. É algo que falta. Muitas vezes, ao longo da campanha e da exploração fica a sensação que LEGO City precisava de mais tempo de desenvolvimento.

Conduzir é um autêntico jogo de equilíbrio.

Conduzir é um autêntico jogo de equilíbrio.

 

Esta grande quantidade de problemas faz mossa mas não implica que não se possa desfrutar de grande parte da experiência, até porque existem elementos muito bons, a começar pelo humor delicioso e refinado que é o melhor conseguido até hoje pelas séries da LEGO. A campanha está recheada de pormenores geniais e damos por nós não só a sorrir mas a rir à gargalhada em muitas das sequências animadas ou jogáveis de LEGO City. Existem dezenas de cameos bem conhecidos como Dirty Harry, ou Starsky and Hutch, por exemplo, mas é nos diálogos que a equipa da TT se esmerou. O jogo está todo localizado para Português e embora possamos criticar o facto de se parecer que estão a repetir os mesmos actores em muitas vozes, torna a estória mais acessível às crianças. Algumas piadas resultam, outras naturalmente perdem-se na tradução impossível, como o momento em que um operário pergunta a outro como vai o projecto ao que este lhe responde: “The first floor is done, but the second floor, that’s another story”.

Se a estória da campanha, com o polícia Chase McCain a procurar e tentar prender o criminoso Rex Fury é mediana, o humor presente ao longo da mesma acaba por salvar a festa. As missões seguem quase todas a mesma estrutura e passam-se maioritariamente em zonas interiores ou estanques como uma prisão, um museu, uma gelataria, ou uma estação espacial, nas quais temos que progredir desbloqueando elementos, abrindo cofres, destruindo portas, entre muitos outros pequenos objectivos.

Mayday! Mayday!

Mayday! Mayday!

 

Ao longo da estória vamos usando o GamePad da Wii U como se fosse o nosso computador pessoal, o que resulta na melhor implementação que assistimos até hoje de jogabilidade assimétrica. Recebemos mensagens vídeo no GamePad de outras personagens, consultamos os colecionáveis todos de forma fácil, usamos o comando como máquina fotográfica, sensor de infravermelhos ou amplificador de vozes, entre outras funcionalidades não só bem implementadas como divertidas de usar e, principalmente (tão em falta neste género de implementação): uteis.

Ao contrário do resto da série LEGO, aqui as capacidades dos personagens não envolvem a troca entre os mesmos. Chase McCain possui uma série de sete disfarces que podem ser mudados entre si instantaneamente, cada um com funções específicas.  O operário pode arranjar equipamentos eléctricos, o bombeiro apagar fogos, o mineiro colocar dinamite, entre muitas outras funções que servem para ir progredindo ao longo dos cenários. Estes disfarces vão sendo desbloqueados ao longo da campanha sendo que ao longo da mesma muitos segredos passam-nos ao lado por não termos ainda adquirido certas capacidades. Daí que o jogo convida a revisitar toda a campanha uma segunda vez para desbloquearmos os restantes conteúdos, incluindo caixas especiais que só podem ser abertas com um disfarce de Rex Fury que ganhamos no final da primeira volta.

CSI: Blocos

CSI: Blocos

 

Os interiores onde tudo isto se passa são boas construções visuais com alguns elementos fascinantes graficamente. A capacidade gráfica das secções fechadas é muito superior aos exteriores e à cidade onde existe muito desenho de elementos à distância mas no essencial LEGO City é um jogo em alta-definição que está equiparado ao que se faz na actual geração de consolas.

As secções das missões ao longo da cidade já são mais problemáticas pois as que envolvem perseguições chocam de frente com as más mecânicas de condução (incluindo as dos que nos perseguem) e curiosamente a campanha desperdiça o melhor que a cidade tem. Ao contrário de muitos outros jogos do género, este não aproveita a estória para nos conduzir a grande parte dos locais mais emblemáticos do cenário e isso fica por descobrir para quem quiser depois continuar a sua exploração e apenas se o fizer.

É aqui que LEGO City: Undercover ganha a maior parte dos seus pontos. Na exploração depois de terminada a campanha e na quantidade enorme de coisas que restam fazer. Quando terminámos a campanha a primeira vez (que foi executada com um grau elevado de curiosidade e elementos destruídos) o jogo informou-nos que tínhamos completado 21,1% do mesmo. Mesmo 30 horas de jogo depois ainda estamos a 50% de tudo o que podemos fazer ou colecionar. Este é um jogo que tem seguramente muito mais de 50 horas de exploração para ser completado na totalidade e arriscamos mesmo afirmar que certas pessoas podem ter aqui cerca de 100 horas de jogo para conseguirem atingir os desejados 100%.

Senhor Doutor, não consigo parar...

Senhor Doutor, não consigo parar…

 

Há Super Builds que são construções enormes e maravilhosas para construir, há gatos para salvar; pausas para café que têm de ser feitas; mal feitores para apagar; bandeiras para colocar no topo dos edifícios mais altos; aliens para apanhar; pistas no chão para seguir; porcos para disparar de canhões; caixas de correio para pintar entre tantos outros colecionáveis para encontrar e apanhar. Entre personagens, veículos, red bricks, entre outros são mais de 1000 elementos que temos para amealhar, incluindo disfrutar do nosso primeiro bilião de studs (vamos em 4!). Ou, em alternativa, passear pela cidade a pé, de carro, barco ou helicóptero e explorar alguns dos maravilhosos locais e pequenas surpresas escondidas numa viela, nas traseiras de uma vivenda ou armazém, numa enseada,  ou na ilha da Estátua da Liberdade que fica para vocês descobrirem como lá chegar.

 

O melhor: Mais de 1000 colecionáveis para encontrar; Uma enorme longevidade para completar todo o jogo com mais de 50 horas; O melhor humor até hoje conseguido na série; Os atributos de cada disfarce; A dimensão da cidade; O vício de destruir e apanhar; Piscadelas de olho a séries da Nintendo.

O pior: A condução tosca e presa; O combate simplista e repetitivo; Menos elementos construídos em LEGO do que o esperado; Só poder guardar 15 fotografias no jogo; os helicópteros não poderem pousar em qualquer lado; A rotação lenta e presa da câmara; Música desinspirada e pouco presente.

O facto de este jogo ser apontado a um público mais infantil não desculpa os vários problemas de mecânica que não são resultado de simplificação mas sim de falta de afinação. No entanto, LEGO City: Undercover não deixa de ser uma das melhores e mais seguras introduções aos jogos de mundo aberto e exploração tanto para as crianças mais pequenas como para as mais velhas. Para quem gosta da habitual febre de colecionismo desta série de jogos, este LEGO eleva o patamar da longevidade bem acima das 50 horas de jogo sendo ideal para pais e filhos passarem muitos serões a tentar encontrar mais de 1000 coisas para fazer. Com um humor delicioso resta-nos esperar que no futuro esta série vá um pouco mais longe. Por enquanto vamos até àquela montanha ali, e ao aeroporto, e à ponte, e à praia…

 

(LEGO City: Undercover é um exclusivo Nintendo Wii U)