Brava Dança dos Heróis

Aviso à navegação: esta análise vai começar com gabarolice. Mas uma gabarolice justificada e que merece os devidos encómios: para fazer esta análise jogámos 80 horas de Bravely Default e como tal, atingimos o true ending do jogo. E chegámos ao nível máximo de todos os personagens e de todos os jobs em cada personagem, e derrotámos todos os sub-bosses. Várias vezes. Até que derrotá-los se tornou tão fácil como um passeio à beira-mar numa ensolarada tarde de Verão. Final da gabarolice.

A Square foi sem dúvida a companhia que mais marcou a produção de JRPGs pelo mundo. São alguns dos seus jogos que conseguiram o condão de permitir ao género quebrar as fronteiras do Japão e penetrar no Ocidente. Esta dominância da Square quando comparada com outras companhias que tentaram ocidentalizar os JRPGs deve-se essencialmente ao sucesso comercial e à aceitação crítica que jogos como Final Fantasy IV, Secret of Mana, Chrono Trigger e claro, o Super Mario RPG, tiveram na SNES. É claro que Portugal acabou por ser historicamente “excluído” desta penetração, e a grande difusão (e massificação) do género só surgiria uns anos mais tarde na Sony Playstation através do genial Final Fantasy VII. Tendo jogado grande parte do catálogo de JRPGs da Square nas diversas plataformas para as quais produziram jogos, posso afirmar com toda a convicção que este espírito inovador da empresa terminou em 1999 com o lançamento de Final Fantasy VIII, mas mais do que tudo pelo altamente underrated Chrono Cross, ambos para a Playstation. De 1999 até ao final da empresa em 2003, aquando da fusão com a Enix, a inovação da companhia nipónica era um total marasmo de soluções acomodadas. E é-me também pacífico afirmar que nestes 10 anos de existência da companhia Square Enix, tudo o que conseguiram fazer foi afastar-me de uma das minhas séries favoritas, Final Fantasy, com criações desinspiradas e preguiçosas. Mas felizmente que este deserto criativo desenvolveu o seu próprio oásis, e afortunadamente é um espaço frondoso. E esse oásis tem um nome: Bravely Default.

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Esqueci-me de fazer a cama!

 

Esclarecendo já que este exclusivo da 3DS chamar-se Bravely Default ou Final Fantasy – The Return to Awesome Games é exactamente a mesma coisa. Bravely Default passa-se exactamente no mesmo universo conceptual de Final Fantasy, com os seus laivos steampunk conectados a ambientes medievais, com inimigos, personagens, armas e magias a partilharem os mesmos nomes da série clássica da Square. Mas acima de tudo a escala épica associada a uma tentativa de reinventar o género. Uma tentativa bem-sucedida, convenhamos, e que nos fez relembrar o porquê do “prefixo” Square no nome Square Enix.

O nome Bravely Default deve-se tão-somente à grande inovação mecânica do jogo: as opções de Brave e Default. Brave permite-nos utilizar os próximos turnos (ou acções, até a um máximo de 4 turnos) no imediato, ou seja, ao invés de agirmos uma vez a cada turno, nos dá a possibilidade de atacar 4 vezes. O revés da medalha é que utilizar tantas acções de uma vez vai deixar-nos desprotegidos e imóveis nos próximos turnos. Considere-se esta mecânica uma espécie de “crédito de turnos”: gastamos já os turnos que não temos, e vamos pagando a posteriori, tendo por isso uma opção de bravata ou coragem. Default por outro lado é o exactamente inverso: não agimos no nosso turno, colocamo-nos numa posição defensiva que mitiga parte do dano que recebemos e que nos vai permitir acumular acções para os próximos turnos. Fazendo novamente um paralelismo com linguagem bancária, Default age como uma Conta de Poupança, em que não gastamos hoje para podermos acumular para o amanhã. É claro que o jogo pode ser jogado como qualquer jogo por turnos, em que agimos na nossa vez e aguardamos a resposta do adversário, mas a mecânica de Brave e Default vem trazer uma dinâmica de risco e compensação que é inédita aos JRPGs. Confere-lhe também uma outra dimensão táctica que é igualmente inovador, e que agita um género que se acomodou a fórmulas de funcionamento.

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Toma lá bichano!

 

Esta dimensão estratégica e táctica de Bravely Default é cimentada por outra inspiração retirada da série Final Fantasy, no caso, FFV, em que cada personagem tem à sua disposição a possibilidade de adaptação a qualquer “profissão”, não tendo o pendor fixo de muitos RPG em que o personagem x é um atacante e o personagem y é um healer. Apesar de se perceber uma afinidade estatística dos 4 personagens para alguns papéis, na prática é-nos possível efectuar qualquer combinação de classes em cada personagem, dentro dos 24 jobs disponíveis. Cada job é desbloqueado ao derrotarmos um boss, e só cerca de metade é que são ligadas ao enredo. Todos os restantes são obtíveis através de quests opcionais, com inimigos poderosos mas que nos permitem também aprofundar um pouco mais a história do mundo em que jogamos, e do envolvimento dos nossos 4 personagens nas movimentações político-religiosas à sua volta.

Outro regresso às origens é o facto de que não dispomos de uma party, mas sim de 4 personagens fixos que nos acompanham por toda a história e que estão intimamente interligados ao enredo. São, aliás, estes 4 heróis que têm de interagir com os 4 cristais (outro elemento comum ao mythos de FF) e que, à semelhança de outros jogos da Square, são os únicos personagens jogáveis. Esta dinâmica de atribuição de um job primário e um job secundário, assim como uma lista de habilidades passivas e eficácia no empunhamento aos personagens permite-nos criar estratégias e combinações mais ou menos eficazes, mediante o inimigo com o qual nos defrontamos. Porque ao contrário de outros jogos do género em que em nível máximo conseguimos derrotar qualquer inimigo de encontros aleatórios com um só ataque, em Bravely Default, mesmo com tudo no máximo, teremos quase sempre de utilizar todos os personagens (ou diversos turnos em modo Brave) para resolver o combate.

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…e para o meu próximo truque queria pedir ajuda da audiência…

 

Também para agradar aos opositores dos encontros aleatórios, tão típicos dos JRPGs, é possível configurarmos a percentagem de probabilidade desses encontros acontecerem, até ao ponto de os desligarmos por completo. Isso e a possibilidade de “gravarmos” uma sequência de turnos e permitirmos que os (simultaneamente) odiados e amados random encounters sejam resolvidos em modo automático, ou seja, os nosso personagens vão repetindo as escolhas que definimos. Claro que é altamente desaconselhável pré-nível máximo, pois vai deixar-nos fracos quando comparados com os nossos inimigos, mas que no end game acaba por agilizar algum backtracking a ser feito por algumas masmorras ou templos.

Visto o jogo não dispor de vozes em Português, preferimos jogar o jogo com as vozes no original japonês (o jogo está todo vocalizado) com legendas em Inglês. O que acaba por conferir uma carga cinematográfica a um jogo cujo visual de backgrounds detalhados e a fazer um uso excepcional da estereoscopia da 3DS.

Bravely Default possui também um método curioso de pesquisar itens e habilidades especiais para os nossos personagens, através da reconstrução “em tempo real” da vila de onde Tiz, um dos nossos personagens, é originário. Cada componente da vila permite-nos essa pesquisa de habilidades ou itens, e a rapidez de construção vai dependendo do número de amigos que temos que jogam Bravely Default. Mas mesmo para quem tem poucos ou nenhum amigo que jogue Bravely Default, é-nos permitido diariamente enviar convites para amigos “aleatórios” que podemos utilizar na reconstrução da vila, assim como invocações de combate. É claro que aos nossos amigos é possibilitada a nossa utilização como os célebres Summons da série FF. Para que a vila seja reconstruída e para que ganhemos SPs (turnos fora do tempo, ou seja, a possibilidade de executarmos acções extemporâneas) basta-nos deixar a consola em Modo de Descanso que os resultados vão surgindo. Este tempo em standby não conta para as horas de gabarolice indicadas no início do jogo, nem sequer para o contador interno do próprio jogo: serve apenas o propósito de trazer a ideia de acções de longa duração em tempo real, a um jogo em que a temática temporal está mais presente do que se imagina.

 

O melhor: as mecânicas de Brave e Default; a dificuldade estratégica dos combates; o regresso aos FF (ainda que com outro nome) inovadores; a reinvenção do género.

O pior: algumas decisões narrativas (sob risco de cometer spoilers) nos obrigam a repetir (em excesso) algumas sequências do jogo.

Bravely Default foi a minha forma de encerrar com chave de ouro um ano em que estive essencialmente debruçado sobre a portátil da Nintendo. É também uma belíssima forma da companhia terminar um ano de sucesso no que diz respeito ao seu catálogo: com um JRPG reflectido, sólido, inventivo e criativo dentro da fórmula clássica dos jogos por turnos. Com a beleza e a dimensão épica de um Final Fantasy, Bravely Default quis soltar-se das constrições do peso do nome da série e voar por si mesmo. E ao fazê-lo permitiu o grande momento de reinvenção do género pela Square Enix, que há tanto tempo fazia esquecer o quadrado do seu nome.

Bravely Default é um exclusivo 3DS