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– Atenção! – clamou uma voz semelhante a um oboé que tivesse subitamente recebido o dom da fala. – Atenção! – repetiu a tal voz no mesmo tom, monotonamente nasal e agudo. – Atenção!

A mancha desfocada que aparece no ecrã assim que iniciamos Metal Gear Solid V actua como um atordoador, como para adormecer a excitação do iniciar de mais um grande título desta série. Como se não bastasse, este é especial: ao que parece, o último de Hideo Kojima. Luto.

O que mais tarde aparenta ser a configuração do modo online é tomado na altura de sua ocorrência como um momento simplesmente de confusão, desorientação (quem ainda não viu o começo do jogo neste momento está às aranhas. Vou tentar explicar na próxima frase). Todo este divagar existe porque no momento em que iniciamos o jogo encontramo-nos numa cama de hospital enquanto acordamos de um coma. Pressupomos o óbvio: somos Big Boss, aquele que momentos depois de ter retirado inutilmente um explosivo dentro de Paz e esta se ter despedaçado no seio do espaço comprimido entre o nosso helicóptero e o mar que sobrevoa, estava a combater pela defesa de nossa Base Mãe em ruína onde uma explosão determinou o nosso estado actual. Demasiado fogo de artifício, demasiado Hollywood para meu gosto, pois da mesma forma que gravações ‘artísticas’ de armas são inúteis em combate (já tinha aprendido Ocelot à nossa custa em MGS3) também estas explosões e fogo de artifício o são. Felizmente, em nada esses acontecimentos determinam o tom das primeiras horas deste magnífico jogo.

– Atenção! – insistiu a voz, sem a menor alteração de tom.

Uma vez assumindo quem somos (Big Boss) é-nos perguntado o nome. E neste momento, apenas questões se levantaram na minha cabeça (e nas vossas, espero). Isto é o Kojima a ser génio ou apenas uma configuração irrelevante? O descarte de David Hayter do plantel de vozes foi uma aposta na descaracterização da personagem e este início envia-nos exactamente na mesma direcção sem a assumir. A série sempre foi conhecida pelos traços fortes das personagens e character development, qual o motivo desta pergunta?

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Apenas com esta pergunta, o tom do jogo faz-se sentir outro, faz-se sentir próximo, faz-se sentir íntimo. E momentos depois o tapete é retirado, observando a reacção da personagem quando o médico encarregue do nosso quadro clínico nos explica a nossa condição. Esta desencarnação e encarnação está presente em inúmeros momentos de MGSV, tanto na sua estrutura e concepção como na sua história e forma como é contada.
A grande introdução deste texto é facilmente humilhada pela introdução do jogo em questão. E para todos os que dizem que não gostam de cutscenes, as notícias são que este jogo foi construído com as queixas do anterior em mente: as cutscenes sem gameplay à mistura são bastante curtas e, regra geral, dizem muito, muito pouco, visto a grande parte da informação relevante para a narrativa é narrada via rádio por Ocelot. As cutscenes servem para momentos de glorificação das personagens e cenários, reforço no estabelecimento de intenções ou para induzir sentimentos no jogador. Este contraste torna os momentos relevantes de forma óbvia quase artifícialmente, quase como nos estivessem a pedir para largar o comando. Às vezes este contraste é mais óbvio, com uma mudança de ângulo brusca, outras vezes mais subtil, mas continua lá, para o bem e para o mal.

– Atenção! Atenção! – continuou a voz. Que coisa estranha e disparatada!

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A desencarnação ocorre mais uma vez quando nos apercebemos do gameplay que nos espera. “How you do it, its up to you” é suficientemente explicativo quando dito por uma personagem nesta série. Não há false advertising em jogos de Kojima, e se acontecesse os fãs seriam nitidamente castigadores nas suas opiniões. Somos largados apenas com um cavalo e meia dúzia de armas para executar a primeira missão. A partir desse momento somos livres. Livres para irmos onde quisermos e para onde nos apetecer. Metal Gear Solid V conta com um open world de dimensões respeitáveis, na realidade, dois. Além destes conta com a sempre em mutação Mother Base, onde nos podemos dirigir para executar treinos, desenvolver (inevitávelmente) a história ou até tomar um rápido duche, para apagar as marcas de cada missão que desempenhámos. Apesar ser um mosaico fulcral para o desenrolar da história e para o gameplay, a visita à Mother Base mostra-se muito pouco importante, irrelevante, diria. De tal forma que parece que o segundo modo online deste jogo foi feito para apagar esta lacuna. Por outro lado é este o local que fornece os momentos mais irónicos e humorosos deste jogo, que em tanto definem o estilo de Kojima e seus lacaios.
O papel da Mother Base, ou melhor, toda a infraestrutura que a rodeia, é prestar-nos apoio e mutar-se para se tornar maior e melhor, tal como uma empresa, mas sem corrupção. Sim, é isso. Uma empresa cheia de amor pelo homem que dá a cara por cada missão, pelo o homem que, a partir de balões teleguiados, leva um a um cada novo membro para staff da base mãe: Big Boss. Para o bom funcionamento da mesma esse mesmo homem terá de gerir o pessoal da forma correcta, distribuindo cada pessoa para a divisão que trabalha melhor (das várias divisões disponíveis). Isto poderá ser feito um a um (que exige muito mais tempo do que deveria) ou deixado à responsabilidade da IA, no entanto e em último caso, diversas vezes terão de fazer alterações a essa distribuição automática para, como por exemplo, terem pessoas necessárias para desenvolver uma arma específica.

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– Atenção! – tornou a tal voz, que nada tinha de humana – Atenção!

Fora da Mother Base o gameplay desenrola-se da forma esperada. Consiste numa lista de missões, ligadas pelo mundo aberto onde ocorrem. Estas têm uma diversidade razoável, visto que grande parte delas consistem em ir até ponto B, ou resgatar individuo X. Há também aquelas onde temos que encontrar objecto Y que não sabemos a localização exacta e depois há aquelas que são missões secretas e as secundárias que tomam proporções épicas (verdadeiramente épicas). A narrativa evolui com pequenos truques, maioritariamente por estreitamento de vias, forçando o jogador a tomar um determinado caminho e despejando uma cutscene que ocorre naquele local. Funciona bem mas faz-se sentir artificial uma vez que o estilo de gameplay motiva a criatividade e falta de linearidade, no entanto, ainda não estamos na altura em que a tecnologia é suficiente para fazer desenrolar a acção independentemente do local do jogador, sem que estas sejam pré-programadas.

O gameplay de um ponto de vista mais microscópico (quanto a controlar Big Boss e esses preciosismos que são na realidade tudo aquilo que nos fez ficar junto desta série durante tantos anos) a série deu estranhamente um passo em alguma direcção, depois de anos de teimosia figurativa. A meu ver, um passo para melhor. As mudanças são essêncialmente a forma de funcionamento da nossa ‘saúde’ (adeus health bar, olá energia regenerativa) e grande parte dos parâmetros que caracterizavam a série tornaram-se secretos. Isto não normaliza face ao panorama actual de jogos pois os parâmetros estão nitidamente lá e fáceis de reconhecer por alguém familiar à série. Ou seja: o display que mostrava tradicionalmente “ALERT 99.99” não existe e a barra de PSYCHE também não, no entanto, comprimidos de pentazemin continuam a existir para corrigir a nossa mira bamba em situações de stress mais apertado.

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– Atenção! – tornou o oboé. Sim, atenção.

Atenção às encarnações. Atenção aos detalhes, atenção aos espirros devido à inquietude do ar gerada pelas hélices do helicóptero depois de tomar banho na base mãe. Sim, atenção aos detalhes, talvez responsáveis por grande parte da popularidade da série. Atenção às conversas, atenção às paisagens que em tanto nos fazem questionar em que jogo fitámos tão belas. Atenção ao Final Countdown dos Europe, ao Take on me dos A-Ha. O meu problema com tantos outros jogos está resolvido com o menor dos esforços aqui, Metal Gear Solid V sabe exactamente o que é em cada momento e isso é visível até nos efeitos sonoros escolhidos para determinadas ocasiões. Faz-se sentir sério e tenso em momentos (<<Atenção!>>) sem deixar de se reconhecer como o jogo de vídeo que é em cada balão que mandamos para a Base Mãe ou no som de cada diamante que apanhamos, divertido e bem humorado sem ser humilde em pedir um Oscar por determinadas imagens em cutscenes e até em gameplay normal. Atenção às desencarnações.

Após um longo silêncio, a tal voz retomou bruscamente o seu velho estribilho
– Atenção. Atenção.

Atenção ao que aqui temos. Atrás dos poucos defeitos e deformações reside um dos poucos videojogos em que dar setenta euros no dia de lançamento em detrimento de uma cópia para press foi feito num piscar de olhos e sem uma pinga de arrependimento. A última vez que o fiz foi há dez anos atrás e sou um jogador bem assíduo. Temos um jogo que, apesar de se apresentar como o último de cerca de vinte anos nas mãos de um só criador e só uma equipa aceitou toda a mudança na forma como é jogado e apresentado sem o menor medo arriscar e inovar.

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Finalmente, numa frase melodiosa, dó-dó, sol-dó, disse: – Aqui e neste momento, rapazes; aqui e neste momento, rapazes.

Aqui e neste momento surge uma obra que irá servir de exemplo para muitas outras e me deu e continuará a dar horas de diversão como poucos outros jogos me dão. Não há experiências stealth como na saga de Metal Gear Solid, uma série agora encerrada e que para sempre será olhada com respeito pelos developers e carinho pelos fãs. E esse carinho existe não pelo jogo, mas pelas personagens, pelo medo de cada travessia a rastejar debaixo do nariz do inimigo, pelo sentimento de recompensa quando flanqueamos a atenção de cada guarda com uma C4 a explodir, colocada estratégicamente na ponta oposta da nossa posição.

– Aqui e neste momento, rapazes. – salmodiou o pássaro – Aqui e neste momento, rapazes.

Aqui e neste momento, rapazes, temos um excelente jogo com imenso tempo de diversão para quem gosta do género stealth, desde que esteja pronto a assumir uma evolução do género. Os poucos defeitos que tem, em pouco põem em causa a jogabilidade e o que vos é oferecido pelo preço do jogo é ridículo comparativamente a todos os outros jogos que podem comprar. Porém, devido à mudança no gameplay, talvez não seja o melhor título da série para se começar.

– Aqui e neste momento, rapazes.

Aqui e neste momento, rapazes, disse o que tinha a dizer. Restam dois artigos: um sobre as falhas de MGSV e outro sobre o novo MGSO.

Analisada a versão de Metal Gear Solid V – The Phantom Pain na Playstation 4,
Todas as fotos são exportadas com o botão ‘SHARE’ durante a minha playthrough.
Este texto contém excertos de “A Ilha” de Aldous Huxley

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