Parte I
À procura de Deus

[Escrito em Setembro, em Portugal]
Deus morreu, matámos Deus, e agora, quem limpará o sangue das nossas mãos, homicidas dos homicidas; que água nos purificará, que festas, que rituais, que jogos sagrados teremos que inventar?
Nietzsche, falando para o ocidente, afirmou que Deus morreu. É discutível, mas constatável; se for verdade, que penso que é, pelo que é que foi substituto?

A resposta à pergunta anterior é, creio: nada. Mas não devia ser assim.
Como João Botelho – não concordo com o que disse, palavra por palavra, mas partilho o seu sentimento – tenho vergonha das salas de cinema de hoje. Estão sujas. Uma sala de cinema não devia estar entre um
Burger King e um Pans & Company. Uma sala de cinema devia ser uma igreja.
Uma
GameStop, com duas ou três crianças ranhosas lá dentro, uma de mão dada à avó, a apontar para um GTA na prateleira, outra a jogar a consola, enquanto espera que o pai volte do multibanco, uma vítima de acne a perguntar quanto custa o novo periférico da Activision, dois jovens adultos no fundo da loja, um não toma banho há dois dias, outro há três, cada um à procura nos caixote dos jogos a 1€, desesperadamente, para terem ocupação nos próximos dias de folga – é uma imagem degradante; é errado, é imoral; não pode ser.
Sou defensor da apoteose da Arte. Escrevi num artigo de opinião estilo-manifesto que acho que os videojogos não são para crianças, porque os considero como Arte. Não considero todos os videojogos como Arte, atenção; na verdade, existem muitas poucas obras de arte no
medium, se é que há; o medium em si é que é artístico.

IMG_9928

[Escrito em Agosto, numa noite passada em branco num aeroporto alemão]
Sou contra a falta de higiene, sou contra a roupa que cheira a pizza, sou contra adultos que veneram produtos claramente desenhados para crianças, que se aproveitam deste tipo de eventos [Gamescom] para se sentiram seguros, com a mentalidade ‘aqui não sou julgado’, ‘aqui somos todos assim, e isso é bom’; não, não é bom, cada um tem os gostos que tem, cada um tem os seus hobbies e interesses, acontece que também sou um amante de videojogos, de anime, de RPGs, de jogos de tabuleiro, e também celebro isso tudo. Mas não começo quase a chorar de comoção se vir um trailer de um produto, como já cheguei a testemunhar ao vivo mais do que uma vez.
Um CD numa caixa que se encontra à venda em lojas por todo o lado, não é uma religião.
Há uma fronteira bastante grossa entre quem acha o conceito das sete artes limitado, e busca valor artístico na totalidade do espectro transmediático, e quem vive uma adolescência (ou infância) perpétua, e/ou ganhou dependência ao escapismo. Não aceito que pessoas incompletas se celebrem desta maneira apaixonada, não aceito eventos como este, não aceito o que representam.

IMG_9944

IMG_9854 (3)
[Escrito em Agosto, numa varanda alemã]

Uma amiga minha sugeriu-me que desse uma vista de olhos à Notgames Fest, que estava a decorrer ao mesmo tempo que a Gamescom. Cheguei atrasado à apresentação de Vermintide para ir lá dar um salto.
Depois de andar uma hora à chuva, perdido, encontrei o festival de Colónia num andar de uma faculdade, escondida atrás de uma estação de comboio. Fui recebido, deram-me uma pulseira; entrei numa espécie de labirinto de paredes de cartão, pouco iluminado, com som-ambiente experimental; uma instalação artística tipo-museu, com smartphones, tablets, periféricos de VR, monitores, teclados e ratos, tudo espalhado; a assitstência jogava, observava, contemplava, disctuia; nem um único grito, nem uma única pessoa a babar-se para prateleiras cheias de merchandizing; não havia cachorros com mostarda pisados no chão.
Não estranhei mas foi um choque. Imaginei que sítios destes já existissem, mas nunca tinha estado num.

IMG_9836

[Agosto, Alemanha, aeroporto]
[Esta Gamescom] não foi nada de especial para o público, em termos de jogos. Quem foi à procura de AAAs encontrou uma seleção reduzida em exibição. Quem foi à procura de jogos de autor, encontrou um pequeno corredor com uns quantos developers pouco ocupados, a maioria deles agarrados aos seus smartphones, à espera que as horas passassem. A grande vedeta, na zona pública, foram os torneios de AAs, as pessoas aos berros, os megafones; as filas de espera gigantes, os grupos gigantes a olhar para ecrãs, multidões de adultos de mochilas às costas, a ver um pódio de gente a atirar cópias de jogos ao ar  como se fossem bouquets de flores, para apanharem, como quem fez um churrasco e dá o resto das costeletas aos cães, da varanda.
Na secção dos indies não há mulheres com tops justos, não há holofotes, música de feira popular nem esculturas gigantes. Há bons jogos. Por isso é que não havia lá ninguém. Por isso é que a zona indie da Gamescom decresceu, comparando com o ano passado.

Parte II
Morre e não tenhas filhos

[Continue a ler]