A metade bem-executada de um jogo muito, muito incompleto

O mercado dos fighting games tem crescido em seguidores, em oferta e em qualidade nos últimos anos, o que pode, em grande parte, agradecer ao renovado interesse criado em torno de Street Fighter IV. Como aqui dissemos diversas vezes, o ano passado foi um excelente ano para o género com óptimos lançamentos que facilmente rivalizavam pelo lugar cimeiro d”O Melhor Fighting Game de 2015”.

Street Fighter V (3)

Já aqui contei antes a história de como o Street Fighter II foi o primeiro jogo que alguma vez joguei em arcada, o que me levou pouco tempo depois a comprar a respectiva caderneta da Panini, que até hoje ficou incompleta. Escolher entre SF e Mortal Kombat sempre foi uma escolha difícil, como quem pergunta a um pai qual dos dois filhos mais gosta, mas a realidade é que sempre pendi para o lado do Scorpion e afins. Aliás, os dois jogos sempre viveram em duas esferas distintas, tendo como elementos sobreponíveis o facto de serem ambos fighting games e de um ter surgido “a cavalo” do sucesso do outro.

Antes de mergulhar no busílis de todo este Street Fighter V, a real falta de conteúdo, gostaria de aproveitar para falar de algo: a confiança colectiva numa entidade empresarial. Ao primeiro contacto, ao ver que o jogo possui apenas 16 lutadores, pensei automaticamente que a Capcom iria continuar a sua política de lançamentos sucessivos de Hyper, Super, Ultra, Uber, Edições, obrigando os jogadores a gastarem somas avultadas para obter todos os jogadores possíveis. A companhia garante que para este Street Fighter V a política será diferente e que todos os lutadores estarão disponíveis por DLC pago com dinheiro ingame e com dinheiro real, abrindo caminho para as microtransacções num jogo que por si só custa o full price de AAA. Este caminho actual seguido pela Capcom é culpa de uma série de tolerâncias que tivemos até hoje, e de imediato isto veio-me à cabeça:

A realidade é que a minha confiança na Capcom é pouca ou nenhuma e já por diversas vezes defendi que a solução para o péssimo caminho que a ganância desmedida da empresa e os terríveis resultados que têm tido passaria por serem adquiridas por uma companhia que soubesse gerir a sua propriedade como a Nintendo. É que a melhor analogia que consigo encontrar para a Capcom é a caricatura do personagem do Colin Farrell no filme Horrible Bosses, em que ele herda a propriedade que o pai construiu durante tantos anos para depois geri-la desastrosamente. A Capcom possui propriedade intelectual de gigantesco valor e o que é que tem produzido com isso? Todos sabemos a resposta…

Street Fighter V (2)

O mercado dos videojogos mudou estrondosamente entre o lançamento de Street Fighter IV e o V. Mas a maior mudança e que veio alterar o paradigma do que a Capcom encetou para este SFV foi mesmo o peso económico e mediático que os e-sports assumiram, e o papel que SFIV teve nesse segmento de mercado. É aliás, essa a grande justificação para este lançamento apressado de Street Fighter V: a necessidade de dar meses de hábito aos jogadores profissionais para os Mundiais a decorrer em Julho, sob pena de este campeonato ter de ser feito no jogo anterior.

E é aqui, acima de tudo, que a Capcom define a sua estratégia: eles querem agradar e cumprir com as necessidades dos hardcore gamers e dos jogadores profissionais, e são esses a quem devem agradar. Lançar o jogo neste momento a 59,99€ apenas com vertente online é um gigantesco murro no estômago de todo o restante mercado. No qual, enquanto crítico, e infelizmente para SFV, me incluo.

Street Fighter V (1)

Da minha parte são 25 anos de dedicação e atenção a um género que com alegria vejo a reassumir uma preponderância para lá do esquecimento a que se viu votado na década passada. Sempre joguei versus o CPU, ou contra amigos e família no bom e velho multijogador local, e por alguma razão nunca me senti compelido a aderir à componente online. Reconheço-lhe o mérito de ter contribuído para ressuscitar o género, e sempre senti que existia até hoje um equilíbrio da oferta para agradar a todos os públicos, e que mecanicamente todos os jogos incluíam modos que agradassem a “gregos e a romanos” (como diz o outro). O que significa que os jogos respondiam às necessidades dos single e local players como eu, mas que traziam também o desafio competitivo para os jogadores mais virados para o multiplayer e ranking online. Street Fighter V ser lançado sem quaisquer modos single player à excepção do parco modo de Story Mode e de Survival é uma das maiores provas da inércia e falta de direcção que a Capcom tem nos dias de hoje. É preguiçoso, abre desconfiança, e remete-se a um canto de vulnerabilidade do qual dificilmente irá sair.

Atentemos a um dos maiores “rivais”, Mortal Kombat X, que apesar de todos os problemas no seu lançamento acabou por ser (para mim, pelo menos) o melhor jogo da série. Um elenco recheado, um modo de história completo (ainda que o enredo seja fraco), diversos modos offline e online que ajudaram a fazê-lo o sucesso que ele é. Obviamente que a componente online não tem 1/100 da força da de Street Fighter, mas como obra total, equilibrada, está muitos furos acima deste perfeita cretinice que a Capcom nos brindou. A pressa em lançar o jogo é tão óbvia que o mais do que martelado pseudo-modo-história (dois a três combates facilíssimos a explicar um pouco do enredo de cada personagem) têm ilustrações com voice-over a preencher os espaços entre combate, cuja estética, estranhamente, choca com a linha visual tão demarcada de Street Fighter.

O pior desta edição pré-lançamento que é na realidade prática este Street Fighter V, é que todas estas pueris decisões acabam por prejudicar aquele que é (ou que virá a ser) possivelmente um dos melhores jogos da série. Visualmente SFV é sublime, utilizando da melhor forma as animações tridimensionais com uma abordagem textural mais próxima da ilustração. O combate, em si mesmo, foi simplificado, tornando-se um cumprimento da máxima “fácil de começar, difícil de masterizar”.

Street Fighter V (2)

A componente online, quando não falha, está exímia. Dos muitos combates online que fiz (não tinha muito mais o que fazer dentro do jogo para ser honesto) poucas foram as vezes em que o lag acabou por prejudicar o próprio combate, e nos combates em que a ligação estava boa a fluidez assemelhava-se à de estar a jogar com alguém ao meu lado. Compreendo, que no meio de toda esta pressa no lançamento os servidores ainda não estejam totalmente funcionais, especialmente porque as possibilidades de crossplay de enfrentarmos jogadores na PS4 ou no PC indiferenciadamente mostrou-se bem mais eficaz do que eu algum dia esperaria.

O melhor: a simplificação (aparente) do combate, a fluidez e o nível visual.

O pior: o pouco conteúdo, o ignorar do mercado e da componente single player, as microtransacções, a irregularidade dos servidores aquando do lançamento.

Sreet Fighter V é um jogo incompleto e dá-nos a perfeita certeza de que era perfeitamente exequível equilibrar o conteúdo online e offline aquando do lançamento. Se isto será culpa de decisão de direcção ou simples desnorte criativo, apenas a própria Capcom poderá responder. SFV é apenas o parcial daquele que será um dia um magnífico jogo que ficará para sempre ensombrado com um lançamento e com conteúdo tão pobres. O que fica é um excelente jogo que não está, de todo, pronto para ser lançado para o público, a um preço de venda total quando o seu conteúdo tem diversas componentes em falta. “Adicionaremos o resto do conteúdo ao longo dos próximos meses” diz a Capcom. Mas nenhum jogador pode ir pagando os 59,99€ em prestações à medida que o conteúdo vá sendo implementado pois não?

Street Fighter V foi analisado para PS4 através de uma cópia de análise providenciada pelo distribuidor.