Este one-hit wonder que é o Rockwell dizia-o, e bem. E no caso da protagonista de République suponho que isto é um alívio.

Desenvolvido originalmente para mobile depois de uma campanha de sucesso de Kickstarter, République, o primeiro jogo do estúdio Camouflaj que conta nas suas fileiras com veteranos da indústria que estiveram por trás de jogos como Metal Gear Solid, Halo e F.E.A.R. quis arriscar ao elevar o patamar do que se depreende como a qualidade excelente de um jogo para o mercado móvel. A sua arriscada incursão e experimentação pelo género de acção furtiva tinha muitos factores a jogarem contra o seu sucesso. Mas a qualidade geral do jogo acabou por evidenciar o mérito do risco tomado pela Camouflaj ao fazer uma das propostas mais interessantes dentro do género que no mercado AAA está demasiado marcado por uma certa contenção e conservadorismo.

République Remastered (1)

Em jeito de post-mortem para a aclamada receptividade que République teve, o estúdio Camouflaj decidiu remasterizá-lo para que se adequasse às expectativas das gerações actuais, lançando-o para a PS4 e PC há poucas semanas.

République coloca-nos no centro do turbilhão de uma sociedade hiper-controlada, em que a liberdade de expressão é proibida. Nos primeiros instantes pouco sabemos sobre o que realmente se está a passar, enquanto observamos pelas câmaras de vigilância uma série de agentes da Polícia do Estado a capturarem uma jovem do seu quarto por, alegadamente, possuir literatura proibida.

République Remastered (2)

Andamos de câmara em câmara, a observar a cena de diversos pontos de vista distintos, através do omnipresente sistema de vigilância que não poderia ser mais orwelliano nem que assim o quisesse. République vai beber de alguns dos exemplos de ficção distópica essenciais da Literatura, em que Fahrenheit 451 de Ray Bradbury, e Animal Farm e 1984 de George Orwell assumem em muitos aspectos do enredo a sua influência.

Ao contrário do que esperamos nós não controlamos directamente Hope, a protagonista, ou pelo menos não no sentido clássico do termo. Mas somos, como disse em cima, os olhos dela sobre toda a estrutura governamental, garantindo a sua segurança como um anjo protector. À medida que o software que usamos para vigiar/acompanhar Hope é upgraded, vamos tendo acesso a habilidades muito semelhantes às de Watch Dogs, tais como trancar ou destrancar portas, activar alarmes para distrair guardas, entre outros “poderes” que têm como objectivo evadir Hope da prisão.

É este duplo sentimento ambíguo que temos pelo protagonista hacker desconhecido que auxilia na fuga de Hope estando na segurança do seu anonimato (e cujo paradeiro é desconhecido) que choca com a vulnerabilidade da jovem que depende quase inteiramente de nós para passar cada uma das salas e corredores sem ser vista. Salas estas que poderiam ser encaradas singularmente como puzzles no coopto geral do jogo.

République Remastered (2)

Há uma tremenda surpresa em République: a capacidade que teve, na sua forma muito inventiva, de me criar uma imensa vontade de jogar um jogo de um género que pouco ou nada me tem seduzido. É verdade que a furtividade (especialmente no mercado AAA) tem lentamente dado lugar a acção, e que isso penalizou o stealth como abordagem clássica, e este regresso às origens de République perante a total vulnerabilidade de Hope cria o melhor ambiente para o género que vi na última década.

Uma dimensão opcional deste République é a narrativa que vamos construindo (e desconstruindo) à medida que vamos fazendo pickpocket aos muitos guardas e encontrando livros (como os de Orwell e Bradbury) e documentos proibidos. A história desta sociedade e dos seus múltiplos agentes (que vamos descobrindo um a um que quase todos têm problemas mentais associados) vai-se desvendado progressivamente, à medida que algumas questões sobre o papel de Hope na ordem social são levantados.

République Remastered (1)

Se mecanicamente o jogo é desafiante, intuitivo e inventivo na forma como nos coloca no papel assimétrico dos dois personagens em simultâneo, por outro lado sinto que a orientação espacial dentro do jogo é algo que fica abaixo do resto do jogo. O esquema de orientação espacial pelas labirínticas salas do complexo deveriam ter sido melhor indicadas com o interface de République para evitar o que me aconteceu diversas vezes: estar a conduzir Hope em círculos pelas mesmas salas. E não é apenas por nabice minha, é que em tempo real conduzir Hope sorrateiramente pelas costas dos guardas acabou por implicar-me uma série de erros de quais as salas onde deveria entrar, e as que não.

O melhor: o enredo, o ambiente distópico, a jogabilidade e mecânicas assimétricas entre o hacker e Hope

O pior: o mapa não estar em overlay sobre o jogo, algumas salas são algo monótonas na “solução”

République é sem sombra de dúvidas o melhor jogo de stealth que joguei em muito tempo. É curioso que o jogo tenha sido lançado originalmente com esta qualidade conceptual e mecânica para o mercado mobile. A chegada desta versão melhorada e adaptada à PS4 e PC deu-lhe o espaço e a relevância que merece. E deixa-nos a ansiedade para saber o que irá a Camouflaj fazer a seguir.