Fire-Emblem-Fates

A narrativa e o storytelling evoluíram muito nas últimas décadas, demarcando mudanças de paradigma entre a forma que o autor, o conteúdo e o receptor coexistem com o enredo, fora das noções clássicas estabelecidas. A exigência e a maturidade do público tem conduzido a algumas experiências com personagens fora do binómio habitual e da destrinça do bom e do mau, visões maniqueístas redutoras que ficaram excessivamente presas a outros períodos da história do pensamento e da cultura.

Não é por isso uma surpresa que até os meios habitualmente mais destinados às massas e cujo tom usual de estabelecer uma destrinça óbvia entre os papéis clássicos do protagonista e do vilão tenha começado lentamente a ruir. Uma quase revolução, ou reinvenção se preferirmos, que foi notoriamente observada na literatura e no cinema, mas que tardou a chegar à televisão. Ironicamente, e digo-o com a total subjectividade da minha opinião, que foi meio televisivo quem na última década tem quebrado de forma mais peremptória com a dicotomia maniqueísta do bom e do mau.

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Dos exemplos mais óbvios que a televisão nos tem brindado temos obviamente de referenciar Gregory House (criado por David Shore para a série House) e Walter White (criado por Vince Gilligan para a série Breaking Bad) como dois dos expoentes desta total experimentação do papel do protagonista nos limites clássicos do bem e do mal. O sucesso das respectivas (e consequentemente distinguíveis nos personagens) é a notória falta de definição de que parte da barreira moral eles se encontram. São dois casos de protagonistas cinzentos, por vezes mais “maus” do que “bons”, e que assumem o papel de protagonista, herói, anti-herói e vilão. E para tudo isto depende a perspectiva que estamos a assumir para os avaliar.

Esta noção de ponta-de-vista que pode ser observada na vida (dita) real em que percebemos que a maldade é apenas uma questão de ponto-de-vista e que é tão facilmente identificada na Guerra Fria. Por um lado a propaganda anti-comunista norte-americana, que demonstrava que os ideais de esquerda e o grande terror socialista eram uma ameaça real à existência do País. Do outro lado da cortina de ferro a propaganda era a inversa e espalhava o medo do capitalismo encabeçada pelos EUA. Possivelmente ambos os pontos de vista estavam certos, ou ambos simultaneamente errados, ou apenas um dos lados teria razão. E a resposta centra-se apenas no nosso ponto-de-vista perante a questão.

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Talvez tenha sido este um dos factores que me fez apaixonar em 2005 pela série de literatura A Song of Ice and Fire de George R. R. Martin. Cedo percebi que o conceito clássico “dos bons e dos maus” não se aplicava de todo à construção deste mundo. E esta visão cinzenta de todos os acontecimentos era acentuada pela mudança literal de ponto-de-vista de capítulo para capítulo. E foi por esta imersão em múltiplas visões que cedo comecei a compreender a posição dos Lannister (que muita gente de forma errónea apelida dos vilões da história) e acabei por de alguma forma defender algumas das suas posições.

Os diferentes pontos-de-vista não são novidades em Fire Emblem, ainda que no mais recente lançamento (Fates) e estúdio Intelligent Systems e a Nintendo tenham decidido elevar essa fasquia com uma grande dose de oportunismo comercial. Fire Emblem Fates divide-se assim em duas versões distintas, cada uma a seguir um ramo alternativo da escolha do protagonista.

Seguindo o lugar-comum do protagonista amnésico, uma ferramenta narrativa que no meu entender começa a estar sobre-utilizada, em Fire Emblem Fates seguimos a vida do nosso protagonista que está dividido na guerra que se trava entre Nohr e Hoshido.

O grande problema da escrita desta guerra e deste conflito é que os argumentistas da Intelligent Systems optaram pela solução quase maniqueísta de pintar a preto e branco ambas as facções. Sem incorrer em qualquer spoiler, porque estas informações são dados adquiridos até ao momento da bifurcação da história, nós começamos o enredo como um príncipe de Nohr, uma facção imperialista de inspiração europeísta medieval, e cujo Imperador e o seu conselheiro denotam excessivamente a definição simplista de serem os vilões. Do outro lado, no reino de Hoshido, um território de inspirações asiáticas com samurais e ninjas, há uma tentativa de armistício, e de manter a paz a todo o custo, definindo a cores garridas “os bons” da história.

Num momento-chave quase no início do jogo percebemos que não somos realmente parte da família Nohr, mas fomos adoptados em crianças sem memórias anteriores a isso, e que a nossa família biológica é a realeza de Hoshido que nos quer resgatar a todo o custo.

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Para quem possui as duas versões do jogo, Conquest e Birthright, é aqui que a nossa decisão bifurca o enredo. Temos de escolher entre ignorar os Hoshido que nos tentam convencer que somos adoptados, e manter-nos fiel à família que nos criou, auxiliando-os na guerra contra os rivais (e jogamos a storyline de Conquest), ou então decidimos voltar para os braços da nossa família biológica na tentativa de parar os avanços imperialistas de Nohr (e jogamos a storyline de Birthright).

Apesar dos twists e das surpresas que vamos tendo em qualquer que seja a escolha que façamos, e que vão desembocar na expansão comum Revelation, o problema que senti aquando da escolha é a falta de dilema real, pela óbvia dicotomia maniqueísta que existe entre Nohr e Hoshido. Dicotomia esta que é apenas minimizada pelo facto de que, à excepção do Imperador (o nosso pai adoptivo) e do seu Conselheiro, toda a restante família imperial (os nossos irmãos de criação) não são definidos com a mesma dureza. O resto da família de Nohr são o cinzento que o enredo de Fire Emblem Fates precisa: são eles que demonstram que o bem ou o mal dependem do ponto-de-vista, e que apesar de serem família de um déspota imperialista eles são apenas culpados de serem fiéis à sua família, ao seu pai e ao seu reino.

Também a pintar de cinzento este dilema está a noção de que qualquer que seja a nossa escolha, estaremos a decretar guerra à nossa família, seja ela de criação ou biológica, colocando o foco do problema na escolha sangue versus afecto.

É a ligação afectiva que os irmãos adoptivos do nosso protagonista que define um ligeiro dilema à bifurcação entre Conquest e Birthright. Uma bifurcação tão simplista quanto a escolha entre jogar um jogo mais fácil, mais casual, com a possibilidade virtual de chegar com todos os personagens a max level optando pelo dos “bonzinhos” Hoshido, ou escolher um jogo mais difícil e mais desafiante, enveredando pela história dos Hoshido.

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Havia aqui uma oportunidade única de quebrar com todos os estereótipos herdados do manga e do anime, de subverter as expectativas do mainstream e de complicar-nos a escolha, tornando o dilema real e mais cinzento. Sem que nenhuma das facções definissem por si só os heróis ou os vilões, e que houvesse um tumulto ideológico da nossa parte ao escolher um dos lados.

Esta quase falta de cinzento não diminui em nada o brilhante jogo que Fire Emblem: Fates é. Este meu preciosismo é daqueles que apenas o respeito por um grande obra permite, e que é motivado pela noção de que era possível elevar ainda mais a qualidade de algo, cumprindo-se todo o seu potencial.

Mecanicamente soberbo, complexo, desafiante e com uma longevidade que é habitual à série, Fire Emblem Fates é sem dúvida um dos jogos do ano. E é este reconhecimento da sua superior qualidade que me impele a exigir um passo em frente narrativo, aquela linha que separa a complexidade e maturação narrativas da cedência simplista aos estereótipos do lugar comum. Aquele pequeno espaço difícil de atingir que separa um jogo muito bom de um jogo quase perfeito.