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Antes de começar a justificar o porquê da minha escolha, tenho de admitir que começo finalmente a perceber o conceito de pérolas que a Alexa apresentou quando nos sugeriu a criação da rubrica Post Scriptum, dedicada à PlayStation. As nossas escolhas não significam obrigatoriamente jogos que ultrapassam os limiares do sublime e/ou são, do ponto de vista qualitativo, brilhantes, mas jogos (pérolas escondidas) que possivelmente passaram ao lado de muitos dos nossos leitores no gigantesco catálogo que compreende todas as consolas da Sony.

Acima de tudo o Post Scriptum é a extensão da partilha que fazemos diariamente com quem nos lê, no compromisso de trazermos algo diferente e coeso. A minha escolha desta semana, Galerians, para a PS1, é um caso de partilha.

Já aqui falei na minha segunda participação na rubrica do período da história dos videojogos em que subitamente toda a gente estava a tentar apanhar o comboio dourado que partiu da estação de Resident Evil, e que parava em todas as estações e apeadeiros de cópias desinspiradas do clássico da Capcom. Se Dino Crisis 2, pelo menos no meu entender, conseguiu fazer uma perfeita transição das mecânicas de RE1 para um ambiente com um tom de maior acção e menos survival horror, nem todos o conseguiram fazer com igual sucesso.

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À primeira vista Galerians, desenvolvido pelo estúdio Polygon Magic, era pouco mais que uma skin de Resident Evil. E essa sensação era algo que eu já sentia há 16 anos quando o joguei, e que rapidamente se desvaneceu quando o rejoguei há poucos anos.

Lembro-me perfeitamente do setting e do vídeo de abertura me terem captado a atenção nos primeiros minutos de jogo. Controlarmos Rion, um adolescente que descobre que tem poderes psíquicos quando tenta libertar-se do laboratório onde tem estado preso foi algo de verdadeira conexão, quando comparado com similares. Sem grande memória do seu passado (algo nunca visto em jogo algum) temos de utilizar os seus poderes para ir descortinando as experiências terríveis que o seu pai e um outro cientista sem escrúpulos levaram a cabo a uma série de adolescentes, na tentativa (com sucesso, obviamente) de lhes dar capacidades sobre-humanas.

Os survival horrors da época tinham uma tónica que os tornavam muito mais desafiantes para qualquer jogador mas que simultaneamente acarretavam um tremendo risco de frustração. À semelhança de Resident Evil em que as munições eram limitadas e tínhamos de optimizar os recursos, evitando o combate o mais possível, também Galerians apostou num caminho menos direccionado para a acção desenfreado e mais para a sobrevivência propriamente dita.

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Os poderes de Rion funcionam através da injecção de diferentes tipos de droga, e que vão de poderes ofensivos até alguma mais defensivos. A dificuldade adicional que o jogo tem em relação ao seu “pai espiritual” é que a forma como os poderes psíquicos funcionam, com cooldowns de “disparo” de 1 a 2 segundos, leva a que seja quase impossível combater mais do que um adversário ao mesmo tempo. Associando a isso a barra de stress de Rion, que enche quantas mais vezes levamos dano ou usamos os poderes, e que depois de preenchida leva-nos a um surto psicótico que torna os seus poderes incontroláveis apenas controlado através de drogas. Este surto elimina instantaneamente qualquer inimigo mas conduzir a um Game Over se mantido demasiado tempo.

O mercado mudou muito desde o auge da PS1 e é muito difícil que este tipo de decisão fosse aplicada para títulos de alta-relevância para grandes companhias. O survival horror foi lentamente dando lugar à acção, em que um sobrevivente tal como conhecíamos do cinema de terror deu lugar a um herói ou heroína de acção, que dispara cartuchos infinitos de balas sobre hordas de inimigos. Esta ideia de tentar resolver puzzles e de percorrer e sobreviver por um jogo inteiro evitando sempre que possível o combate, dados os limitados recursos para combater , é algo que hoje em dia dificilmente teria expressão para a comunidade de jogadores, sedentos de serem o herói inabalável criado por Call of Duty e demais shooters genéricos.

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Galerians leva-nos para outro tempo, em que as mecânicas estavam estabelecidas de forma a que o desafio fosse constante e que o jogador nunca se sentisse minorizado ou intelectualmente desrespeitado. Um survival horror tal como o nome indica impele-nos a sobreviver, a manter a tensão sempre elevada, a fazermos muito com pouco, a ultrapassarmo-nos e às nossas limitações (ainda que virtuais). Num mercado, à época, onde os muitos jogos do género continham protagonistas e ambientes semelhantes, onde os protagonistas empunhavam armas e era com elas que resolviam grande parte dos problemas, Galerians quis ir mais longe e arriscar ainda mais. Ao colocar o elenco principal centrado em adolescentes com poderes especiais, e a fazerem uso dessas habilidades para sobreviver, num ambiente que conceptualmente poderia ser o início de uma série de comics, mas que aqui tinha o tom pesado ideal, sombrio e cruel. Sem zombies ou outras criaturas que pululavam outros congéneres.

Mecanicamente não é exímio, e é fácil percebermos que há falhas/desafinações dos controlos que vêm apenas somar ao já elevado desafio que o jogo constitui. Ainda assim Galerians merece ser rejogado ao longo dos seus 3 CDs, como marco de uma época em que o mercado não temia frustrar os jogadores e em que o desafio não só era bem aceite como era motivo de regozijo por developers e comunidade. E afirmar isto quase que faz lembrar a senhora do anúncio que afirmava com dificuldade “ainda sou do tempo…”. E sou mesmo.