video-games-live-690x310-817x320

O fim de semana passado foram dois dias em cheio para os videojogos. Entre a organização do Lisboa Games Weeks e o seu leque de entertainers de chambre e demos de jogos já lançados, quem passasse pela FIL no Sábado podia acabar o dia em grande no Campo Pequeno com um concerto de música dedicado ao tema.

O projeto Video Games Live já não passava pela cidade das obras desde 2008 provavelmente devido à fraca adesão dessa primeira tentativa. Tommy Tallarico, líder do projeto, não é homem para desistir de chatear seja o que for e essa persistência valeu-nos mais um serão atípico numa estranha combinação de elementos contraditórios para um resultado agridoce. Ter isto já é bom.

Falar de jogos não me confere grandes credenciais para avaliar uma performance de música. Quanto mais no caso de um segmento tão erudito como o da música clássica. Não poderei portanto fornecer neste texto o nível de sofisticação das revistas musicais e os seus grandes insights sobre a qualidade dos comes e bebes do recinto. É pena.

Para quem não está familiarizado com o conceito, Video Games Live é um projeto americano que combina um conjunto de 3 artistas com orquestras locais para interpretar temas de videojogos numa experiência explicitamente panfletária. Se a música de jogos segue muitas vezes os padrões clássicos do cinema, os entusiastas dos joysticks são mais facilmente devotos do metal do que fãs de um qualquer austríaco de collants. A luta folicular entre hair metal e calvície é aliás uma batalha que se testemunha em muitos dos escalpos das cerca de 500 pessoas que assistiram ao concerto.  Música clássica, ainda assim, impõe respeito a qualquer um. É como Jazz num Starbucks ou um quadro abstrato. Uma coisa que não queríamos ter na nossa casa mas cuja reputação nos compromete a um semblante de respeito. Como se percebêssemos da coisa.

Tommy Tallarico

Tommy Tallarico

Não me querendo distanciar desse retrato de maneira alguma, fui também eu aliciado pela perspectiva de preencher as minhas angustias nostálgicas com este objeto de gente grande, na esperança que os instrumentos de madeira me pudessem despertar uma epifania sensorial. Tal não aconteceu muito por culpa, principalmente, da sala e da composição da orquestra.

O Campo Pequeno é muitas vezes descrito como um lugar de tortura. É algo que posso agora confirmar. Não podendo atestar do sofrimento do animal na arena, o símio das bancadas com mais de 1m40 sofre o martírio do minúsculo espaço disponível para as suas pernas, perdido entre a dor do esforço de contração e o constrangimento de tocar nas costas do vizinho da frente. Para um espetáculo de duas horas o standing ovation é um elogio imprescindível.

A questão acústica da sala foi também um fator prejudicial à experiência. O termo symphonic é recorrentemente referido tanto em palco como na comunicação do evento no geral. Oferecer uma experiência de orquestra sinfónica é o motto da proposta, algo que ficou a cargo da Lisbon Film Orchestra. No site da orquestra são referidos diversos conjuntos sendo a sinfónica composta por 80 músicos e a Clássica por 40… Naquela noite terão estado cerca de 30 músicos… Talvez perto dos 40 com o coro. É pouco. Demasiado pouco para instrumentos clássicos propagarem o som num espaço daquela dimensão, especialmente quando colocados lado a lado com guitarra elétrica ou qualquer outro instrumento ligado a um amplificador. A primeira música da noite, um medley de Castlevania, vem aliás comprovar isso mesmo com a guitarra do amigo Tallarico a sobrepor-se a todos os instrumentos da orquestra tornando imperceptíveis violinos e violoncelos. Na nossa condição de portugueses é mais uma vez o possível a sobrepor-se ao ideal. O meu raciocínio objetivo sobre o problema é abafado pelo constrangimento de uma sala meia vazia. Ter isto já é bom.

Musicalmente nada de negativo a assinalar. Video Games Live já tem cerca de 6 discos lançados e está confortável com o registo dos grandes épicos que nos lubrificam o gameplay. Para além do Tommy Tallarico e o seu currículo recordista na criação de música de jogos (Earthworm Jim, Demolition Racer, Prince of Persia…), temos também em palco a maestra irlandesa Eimear Noone, famosa pela sua participação em quase todas as produções da Blizzard, e a internet sensation Laura Intravia um pequeno génio de versatilidade na flauta e no canto. Estas três personalidades são a face visível de uma experiência agressivamente informal.

Eimear Noone

Eimear Noone

No princípio do concerto Tallarico deixou bem claro que todos os constrangimentos grisalhos do silêncio e discrição eram para ser deitados fora. Jantaríamos em casa de gente fina mas comeríamos com os dedos. Aplausos, gritos, piadas secas altamente referenciadas… Quebrar o selo de constrangimento social dos geeks paga-se com um perigoso mosh pit verbal em que a nossa paciência acaba sempre por ser maltratada. Não satisfeito com a espontaneidade da plateia, Tallarico aquece os ânimos entre duas músicas. De cabeça baixa a passear pelo palco enquanto raciocina, Tommy é um pastor do Gaming a pregar promessas de reconhecimento artístico às ovelhas negras do gaming. “Quem disse que os videojogos são violentos?”, “Quem diz que jogos não são Arte?”, “Quem diz que os fãs de jogo não apreciam música de qualidade?”, “Quem diz que nos jogos não há talentos?” A plateia responde eufórica à chamada deste Moisés de guitarra elétrica e as suas promessas de um mundo fora da marginalidade. Perdi-me entre riso e impaciência nas ruidosas manifestações dignas de um espetáculo de marionetes, sem pudor ou sentido crítico como no fim de um casamento onde somos arrastados para dançar a Macarena. Ter isto já é bom.

Pode Video Games Live realmente conquistar os fãs de música erudita? Certamente não. Da mesma maneira que o André Rieu conquista idosos pouco exigentes através de uma fantasia do Star Trek dos velhos tempos (A Imperatriz Sissi), Video Games Live foca-se tanto em conteúdo como na forma aos que estão familiarizados com o universo fora da simples questão musical. A música de jogos tem um valor especial porque amamos os jogos. Quando a banda toca Resident Evil 5, independentemente da qualidade da composição original, o envolvimento emocional proporcionado é muito inferior a um tema mais simples de um clássico como o do Super Mario. A música de jogos impõe-se a nós e é essa imposição que cria a familiaridade. A música de jogos tanto pode ser a discreta folha de alface no cheeseburguer como o pintelho mal intencionado do estudante atrás da fritadeira. Entende-se, algo que ou se confunde com a qualidade da experiência no seu todo ou destoa do resto como pormenor desagradável. Uma apreciação plena e informada dos temas exige uma cultura que vai para além da mera experiência de jogador. Video Games Live conhece a limitação da sua audiência e quer dar-lhe facilidade de acesso com todas as ferramentas possíveis sendo a principal a nostalgia. Os artistas vestem roupas das personagens, os intervalos, quando não são manifestos, incluem segmentos humorísticos do gagfilms.com, quando a banda toca os ecrãs projetam sempre imagens do jogo… É a contradição de uma experiência exigente para um gamer mas ligeira para um apaixonado de música. Ter isto já é bom.

O que fica da experiência? Essencialmente os temas que marcam a história pessoal de cada um. Donkey Kong, Zelda, Metal Gear Solid, Final Fantasy VII… Estes jogos fazem parte do meu património íntimo e as suas bandas sonoras mexem sempre comigo sejam elas produzidas por uma orquestra ou um toque de telemóvel. Tentando esboçar um juízo qualitativo, destaco as músicas que incluíram a presença da Laura Intravia. Na falta de uma acústica ideal, a sobreposição da sua voz ou da sua fascinante flauta electrónica no segmento Donkey Kong complementaram sempre as canções sem abafar a orquestra –looking at you Tommy– e sem nunca transmitir um narcisismo de palco –mais uma vez… Tommy-.

Laura Intravia

Laura Intravia

Com tantos discos já lançados e tours todos os anos, conseguir uma playlist que possa saciar a nossa fome de clássicos sem ser repetitiva para quem segue as performances anualmente é um desafio complicado. Globalmente, se omitirmos Resident Evil 5 e Advent Rising – jogos que dizem muito pouco ao nosso inconsciente coletivo – o conjunto é acertado… Uma orquestração do tema principal de MGS, um medley Mega Man X e Pokémon são alguns dos temas que teria gostado de ouvir… Cada um terá os seus certamente. Estes são os temas que foram tocados:

– Castlevania

– God of War

-Journey

-Metal Gear Solid (Snake Eater)

-Kindgom Hearts

-Uncharted

-Donkey Kong Country

-Phoenix Wright

-Resident Evil 5

-Tetris

-Zelda

-Warcraft

-Super Mario

-Advent Rising

-ICO

-Skyrim

-Street Fighter II

Encore: 

-Final Fantasy VII (One winged Angel)

-Portal (Still alive)

O que fica desta experiência? Ter isto já é bom. Sempre. Porque houve quem quisesse ver um concerto de Zelda e não pôde. Porque quando vamos a feiras de jogos em território nacional não nos é introduzido nada de novo. Porque quando queremos desfrutar de algo ligado a jogos o único sustento comercial é o fenómeno dos youtubers que nos ultrapassa completamente… Porque sabemos que com este número de bilhetes vendidos dificilmente o Video Games Live voltará a Lisboa tão depressa. Na parte final, Tommy delegou à audiência a responsabilidade da evangelização dos portugueses de forma a tornar um regresso possível. Da última vez foram precisos 8 anos… 2024 será um bom ano.