Há pelo menos uma década que a série Final Fantasy vagueia perdida pelo oceano dos videojogos, dividida entre o porto seguro a oriente e as riquezas que um futuro num continente ocidental desconhecido lhes promete. O paradoxo que os estúdios japoneses como a Square Enix enfrentam não é de fácil resolução: a sua produção está profundamente enraizada na conservadora cultura nipónica e, no entanto, para continuar a produzir as fantasias grandiosas e tecnicamente vanguardistas que caracterizaram o seu período de ouro, têm de atrair o público mundial por meras questões de sobrevivência económica. O nó górdio é que esse objectivo comercial implica adaptar-se ao gosto mundial, por definição acultural e anónimo… ou seja, jogar borda fora as mesmas peculiaridades que são a sua imagem de marca.

A Square entende o perigo encerrado nesse dilema melhor que ninguém, porque milagrosamente sobreviveu a sucessivos naufrágios nessa terra incógnita, incluindo o Titanic Final Fantasy XIII e as suas insuportáveis sequelas. Mas 7 anos volvidos podemos deixar de falar em desastres passados, porque finalmente se achou um equilíbrio fino entre sensibilidades ocidentais e orientais.

A grande chave para resolver o dilema ocidente/oriente foi a famigerada agenda da “fantasia ancorada na realidade”. Todo o mundo de Final Fantasy XV foi pensado a partir de referências do mundo real, reduzindo os adornos fantasiosos a um mínimo. Já não estamos numa quimera mitológica ou num devaneio de ficção científica barroca, mas na Terra como ela poderia ter sido, e isso ajuda a aproximar o mundo das nossas vivências pessoais, facilitando o nosso relacionamento com ele: há um pinhal rodeado de montanhas que podia ser no Marão, uma cidade decalcada de Havana, e estações de serviço que replicam o que imaginamos encontrar na berma de uma auto-estrada estado-unidense.

A fantasia e a cor vibrante do oriente pontuam o ambiente pedestre com o ocasional deslumbre visual. Em pleno combate com monstros, Noctis é como um Sora epiléptico (expectável dado o legado do jogo como projecto querido de Tetsuya Nomura), todo ele saltos e cambalhotas e teletransportes com pirilampos de luz mágica a esvoaçar. Por momentos, parece que controlamos o improvável cruzamento entre um acrobata do Cirque du Soleil e um lutador de kung-fu bêbedo; só que o efeito plástico que tal insanidade opera nos nossos sentidos revela tanto gosto e cuidado técnico nas animações que é difícil não apreciá-lo… por muito tolo que pareça.

Este bizarro casamento entre fantasia e realismo só não dá em divórcio porque a direcção artística ostenta um fervoroso naturalismo representacional. A forma como o Sol banha os cenários reflectindo o momento do dia e tempo é tão minuciosa que desafia as palavras, mimetizando os efeitos de luz, sombra e cor nas paisagens com o nível de realismo de um quadro de um mestre flamengo – a anos luz de qualquer outro videojogo. Esse registo torna os longos passeios pelos amplos espaços de jogo em momentos de puro deleite estético para os românticos entre nós (para além de relembrar-nos que Skyrim foi modelado por crianças de 12 anos). O que é perfeito, porque como em qualquer jogo em mundo-aberto, o que fazemos mais é explorar.

Final Fantasy XV eleva o código do género de fantasia que é escrever a narrativa em torno de uma imensa jornada. A história trata a vasta odisseia de Noctis, o escolhido, para casar com a sua Penélope, supostamente porque graças ao poder do amor e dos deuses, esse casamento irá levar à derrota do grande império do mal e salvar o mundo da destruição… como é que não percebemos isso antes? O macguffin que nos norteia o passo é para esquecer; o que interessa não é o destino, mas o caminho para lá chegar. E é assim que o jogo encontra o seu destino maior, ao usar a imagética do icónico roadtrip norte-americano para dar corpo a essa viagem.

A fantasia que realmente interessa aqui está em podermos apontar para o horizonte e partirmos à aventura, guiando a limousine batmobilística de Noctis enquanto relaxamos ao som de bandas sonora da série que tocam na rádio. É o eco perfeito do sonho de um humilde salaryman que Yu Suzuki outrora evocou em Outrun: ser livre e poder simplesmente vaguear pelo mundo fora num carro de luxo, bem acompanhado, a apreciar as maravilhosas vistas e a curtir a música.

Mas uma viagem não seria a mesma coisa sem alguém com quem a partilhar, e vai daí e fez-se da aventura de Noctis um “there and back again” com três Samwise Gamgees sempre presentes para nos fazerem companhia. Hajime Tabata tirou uma página da Naughty Dog e fez com as nossas múltiplas interacções despoletassem uma miríade de diálogos soltos e plenos de humor entre o quarteto de protagonistas. Mata-se um monstro com pinta? Prompto canta a fanfarra-assinatura da série. Passamos muito tempo a matar monstros? Gladiolus queixa-se do cansaço. No final de cada dia quando acampam, Ignis cozinha um jantar que faria água na boca a George Kamitami, e Prompto, num toque à Boku no Natsuyasumi, mostra-nos um álbum fotográfico com as memórias do dia, onde todas as peripécias acabam comentadas em selfies cheias de poses ridículas. É graças a estes pequenos momentos de amena cavaqueira que o bando de arquétipos saídos de uma passerelle de Tokyo acaba por ostentar algum semblante de personalidade. Até sorumbáticos como eu acabam inevitavelmente a olhar para personagens como Prompto – esse palhaço hiperactivo com défice de atenção que adora vestidos de casamento – com afecto, como se tratasse de um compincha de velha data.

Calha bem que o enredo seja esparso e fique em pano de fundo, chutado para o universo expandido de Kingslaive e Brotherhood, porque aí ainda resistem os alguns dos piores tiques anime da série, ainda que muito suavizados face à era de Motomu Toriyama. A única crítica a apontar face ao seu legado é a notável ausência de set-pieces dignas de nota. Dos pequenos trechos de teatro kabouki da era Famicom às FMVs operáticas da PlayStation, a série sempre primou por ter uma mão cheia de momentos que enchiam o olho e incendiavam a imaginação. Como esquecer a chegada a Midgard em VII ou o baile com Rinoa em VIII? XV é paupérrimo no seu tratamento cinemático da acção, sem um fotograma icónico, um evento épico, um vilão carismático, sem uma sequência poderosa o suficiente que nos marque indelevelmente. Permanece somente o intimismo enternecedor do road-movie, e os delírios romanescos de Yokô Shimomura… o que tendo em vista o que passa por espectáculo nos blockbusters de hoje, se calhar é para melhor.

Até agora, Final Fantasy XV foi a nossa única surpresa este ano. Esperávamos daqui mais um tédio a la Final Fantasy XIII, e em vez disso temos um videojogo que, muitos defeitos à parte, nunca compromete o seu singular foco: a viagem pelo seu sumptuoso mundo. E atinge-o cumprindo superficialmente o extenso caderno de encargo dos públicos ocidentais (Open world? Check. Agência a rodos? Check. Ubisoftização dos sistemas de jogo? Check! Check! Check!) sem lá no fundo no fundo, perder o que faz a sua personalidade brilhar.

É de caras o melhor JRPG desde o longínquo Xenoblade Chronicles, o que pensando bem não é grande elogio tendo em conta as águas turvas em que mergulhou o género. Tabata e Nomura criaram mundo virtual que é interessante de explorar em si mesmo, nem que seja só para desfrutar de um amanhecer numa praia envolta em neblina, ou para viajar na galhofa com os nossos companheiros de banda j-pop. Um mundo que exala exuberância estética e competência técnica, e que nunca se confunde com os nadas ocidentais, sensaborões e cinzentos, que copiou de forma ardilosa. E nesse sentido, é uma obra que por muito que não chegue aos mesmos píncaros, merece mais comparações com um “Shenmue”, “Red Dead” ou quiçá “Witcher 3” que a JRPGs propriamente ditos. É caso para dizer que a Square conseguiu finalmente dobrar o cabo das tormentas e aportar no moderno séc. XXI… seja bem vinda. Que outros lhe sigam a rota.