Não sei que mais possa dizer sobre The Last Guardian que ainda não tenha sido dito. Principalmente depois do genial artigo do nosso Ricardo Correia para o Observador, não sei que mais possa dizer que de alguma forma acrescente algo ao seu texto.

Mas a minha cabeça não consegue pensar noutra coisa. Não consigo deixar de querer ir a correr para casa e partilhar o meu tempo com Trico. Ver o seu olhar curioso e a forma como interage com a personagem que encarno.

Estou a adiantar-me, como sempre acontece quando quero falar sobre algo. Quero falar sobre The Last Guardian porque esperei por este jogo quase 11 anos da minha vida. Desde que, em 2001 joguei Ico, um dos primeiros jogos que adquiri para a minha muita amada PlayStation 2, vivi com ansiedade a chegada de mais um jogo de Fumido Ueda. Ico é uma obra-prima intemporal e a forma como Fumido Ueda dá vida ao verdadeiro Amor sem pronunciar qualquer palavra que para nós seja inteligível é algo de absolutamente mágico. Quando em 2006 joguei Shadow of the Colossus, a minha visão sobre aquilo que verdadeiramente poderiam ser os videojogos, ficou para sempre alterada. Com este jogo, foi provado para todos, que os Poemas podem ser passados para frames e controlados por um comando. Os poemas podem ser jogados. No final desta aventura que mudou a minha vida, aguardei pacientemente por mais um jogo daquela que todos conhecemos como: Team Ico.

Desde o seu anúncio em 2009 até ao seu lançamento em 2016 decorreram sete anos. Sete longos anos. E finalmente chegou, quando todos acreditavam que jamais aconteceria. Chegou como um presente de Natal antecipado. Um jogo carregado de expectativa, já com 2 lados da barreira de “reviewers” prontos a defender o seu lado e a atacar o outro. Uns prontos a Amar a qualquer preço e outros prontos a atacar e sobrevalorizar os seus erros técnicos. Erros esses que foram bem visíveis desde que a sua demo foi lançada. Quando olhámos a demo, foi visível que este jogo foi pensado para a PS3 e depois convertido. Os problemas de framerate e câmara foram de imediato bastante salientes e nunca chegaram a ser corrigidos.

Mas nunca ninguém jogou Ico ou Shadow of the Colossus pelo prodígio técnico ou qualidade de controlo de comandos. Nunca foram os gráficos, jogabilidade ou realismo de cenários que nos fez aguardar anos por um jogo de Fumido Ueda.

Tenho lido e ouvido muitas críticas a este aspecto de The Last Guardian. Muitas análises e reviews numéricas que o classificam como um 4/10, quase exclusivamente pelos erros técnicos. Nas primeiras análises nas quais vi esta classificação não consegui controlar o meu sentimento de revolta. Apeteceu-me confrontar aqueles reviewers e dizer-lhes que estão a classificar algo baseados em padrões que não se adequam ao objecto da sua análise. Seria como eu classificar o Pro Evolution Soccer como um péssimo jogo porque a sua história é horrível. Entendem o que quero dizer? PES não é um jogo de história – é um jogo onde os gráficos e o realismo dado aos jogadores que escolhemos têm um papel fundamental na nossa experiência. Sem essa primazia e realismo de gráficos, jogaríamos antes Subbuteo, como nos anos 80.

Então, para quê julgar como MÁ uma experiência de videojogo baseada em parâmetros que não são a génese do seu objectivo? Os jogos da Team Ico são, acima de qualquer outra coisa, experiências emocionais que nos levam numa viagem pelos nossos sentimentos sem paralelo no Mundo dos Videojogos.

Ico transporta-nos numa Viagem de Amor Puro. Wander ensina-nos o que é Puro Sacrifício. E Trico? Aprendemos com ele o que é Pura Amizade e Confiança.

Mas estes jogos requerem um mindset próprio. Temos que nos preparar para aquilo que vamos encontrar. Temos que entender, antes de iniciar a aventura, que não estamos perante a singularidade gráfica de um Uncharted 4 ou a jogabilidade fluída e intuitiva de God of War 2. Entrar num jogo da Team Ico com o aspecto técnico em mente é como ir ver um filme de Stanley Kubrick e esperar encontrar a adrenalina e efeitos especiais de um filme de James Cameron. Acabamos por perder a oportunidade de desfrutarmos de uma obra-prima apenas porque as nossas expectativas estão nos aspectos errados.

E sim. The Last Guardian tem muitos problemas técnicos. Existe, em muitos casos, sobreposição de frames ao ponto de, em muitos detalhes, as texturas se misturarem umas nas outras. A câmara leva-nos, em muitas alturas, quase ao desespero: tapa-nos a vista, não sabemos para onde vamos, estamos no meio das penas de Trico completamente perdidos, etc etc. O menino cuja pele vestimos corre, muitas vezes, como um Tom Sawyer contra a parede e desespera-nos tentar levantá-lo rápido. Atirar os barris é algo que testa as nossas capacidades mais ínfimas de destreza fina e o simples saltar e pendurar pode ser quase um jogo dentro de outro jogo.

A todos estes erros, eu simplesmente respondo: que é que isso importa quando estamos perante um NPC nunca antes criado em videojogos? Trico é absolutamente ÚNICO. Garanto-vos que não há nada remotamente parecido a Trico naquela que é considerada a 10ª Arte. Fumido Ueda consegue criar um Trico um ser com o qual nos ligamos no primeiro momento e que, a cada cena, a cada capítulo, nos apaixonamos mais e mais. Ao ponto de nos tornarmos seus guardiões mas também seus protegidos, com a subtileza e sensibilidade de 2 instrumentos que se vão alinhando de forma a tocarem a mesma perfeita sinfonia. Apenas controlamos o rapaz – Trico é o nosso companheiro. Teremos que aprender a comunicar com ele – a ganhar a sua confiança, a fazer com que ele entenda para onde queremos ir e para onde queremos que ele nos leve. Quando temos a oportunidade de o salvar, sentimos que fizemos algo efectivamente Bom! Vemos o seu olhar de gratidão. Vemos como abana o corpo e nos afaga com a sua cabeça. Cada vez que o vemos ser ferido, sentimos que parte de nós, personagem que somos e jogador, somos magoados também. Queremos arrancar-lhe as setas – alimentá-lo, afagá-lo como se fosse o nosso animal de estimação mais amado. Jogar com Trico, é como voltar a viver a sensação de termos um animal de estimação que é o nosso companheiro – que estimamos (tal como a palavra indica), como se fosse parte de nós.

Tenho lido que muitos “analistas” desprezaram o jogo pois para eles, Trico deveria ser mais facilmente controlável. A eles digo que não entenderam o objectivo do jogo. Um animal de estimação não é algo que deveremos controlar. Um animal, tal como Trico, aprende à sua maneira, ao seu ritmo e, muito embora possa ser treinado, o processo de treino é algo tão efectivo para o elemento humano como o elemento animal da relação. Quando amamos um animal, aprendemos a comunicar com ele e aprendemos qual a melhor maneira de o levar para onde queremos. Com Trico, ficamos horas a observar os seus olhos curiosos que exploram o mundo. O seu ar confuso quando o tentamos guiar para o caminho errado. A deliciar-nos com a sua inocência e a forma como brinca num charco de água. Como saltita de agradecimento quando o alimentamos. A sua expressão de aflição quando o rapaz que somos se encontra em perigo. Todo o trabalho da Team Ico e Fumido Ueda, todo o brilhantismo desta equipa e deste jogo, recai nas asas de Trico e na forma como ele nos faz voar para além das frames num ecrã.

Percorrer os cenários e torres majestosas deste jogo no dorso de Trico é uma experiência que jamais irei esquecer. As lágrimas que verti em alguns momentos, que não estragarei para quem ler este artigo, serão guardadas na minha memória junto a experiências como Ico, Shadow of the Colossus ou The Last of Us. Percorrer cada capítulo acompanhada por uma banda sonora que se torna simbiótica com a experiência, ao ponto de na sua melodia encontrarmos pedaços da história que jogamos, é algo que não encontramos com frequência em nenhum produto de ficção hoje em dia.

The Last Guardian não é um jogo perfeito. É um jogo cheio de problemas técnicos que enlouquecem os jogadores frenéticos de hoje em dia. É um jogo repleto de pequenos defeitos que são, na minha opinião, completamente secundários face à experiência emocional para onde nos carrega. Hoje, enquanto escrevo estas linhas, sei que vou para casa terminar o derradeiro capítulo desta história. Sinto já uma tristeza e ansiedade antecipada. Não me quero separar de Trico. Temo saber se ele fica bem ou não. Quero acabar e não quero.

Gostaria de ter o poder de vos conseguir convencer a darem uma oportunidade a este jogo. A perderem-se nele e a conhecerem e a apaixonarem-se por Trico como eu me apaixonei. É um jogo com Alma – algo raro hoje em dia. Singular. Sem precedente. Tal como o próprio Trico…