Ter experienciado praticamente tudo o que Watch Dogs tinha para oferecer, explanado esse multitude de abrangências em três artigos consecutivos e a noção que a minha opinião em torno do malogrado jogo da Ubisoft só se materializou depois de ter esmiuçado tudo o que o jogo tinha para dar, conferiu-me uma sensação de quase injustiça dos media e da comunidade perante este jogo.

Sendo verdade que Watch Dogs foi a ponta do icebergue de um conjunto de más-práticas de comunicação das grandes companhias (alimentadas pelo sensacionalismo histérico dos media), em que os atrasos constantes em pleno comboio do hype, para além da gritante diferença entre o produto-publicitado e o produto-finalizado, o que me pareceu no final de todo esse processo é que a grande vítima acabou por ser o próprio jogo. Havia, como expliquei há quase 3 anos, muito conteúdo de Watch Dogs para nos dar, mas que muitos dos críticos não chegaram a conhecer por serem vítimas do preconceito preconizado pela revolta consensual perante o jogo.

Watch Dogs 2 pareceu querer fazer tabula rasa a todas as promessas que o seu antecessor fez antes do seu lançamento, e seguiu um tom discreto para se apresentar publicamente. Com um anúncio simples ao qual se seguiu poucos depois o próprio lançamento do jogo, Watch Dogs 2 não é uma mera sequela, mas sim uma mudança total do paradigma da série e da forma como abordamos o género. Com todos os pontos positivos e negativos que esta mudança traz.

Aiden Pearce, o protagonista do primeiro jogo, era um personagem fotocopiado dos filmes de acção do final dos 1980s e início dos 1990s, e em que percebíamos que Watch Dogs não vivia na tónica da explosão digital, mas sim uma história de vingança tendo como pano de fundo a vida de um hacker. Taciturno, violento, anti-social, Aiden poderia ser interpretado por Jean Claude Van-Damme há 25 anos e ninguém questionaria a suspensão da descrença, porque a construção bidimensional do personagem tem o tom dirigido a milennials, que cresceram com a definição de action hero, de one man against an army da cultura Pop cuja plausibilidade nunca é refutada. E para ser sincero, por Aiden me parecer tão familiar culturalmente perante as muitas referências de acção que tenho, é que tenho de admitir que prefiro-o como protagonista a Marcus Holloway de Watch Dogs 2, o que não significa que ele seja um melhor personagem por isso.

O nosso protagonista da sequela não poderia ser diametralmente mais oposto a Pearce. Aliás, Watch Dogs 2 não poderia ser mais diametralmente oposto ao seu antecessor, e tratando-se de dois jogos com imensas imperfeições, o ónus da preferência recai única e exclusivamente no gosto pessoal. O ambiente filme-de-acção de vendetta do primeiro jogo dá lugar a uma história inspirada levemente no nosso mundo real, onde um grupo de hacktivists chamado DedSec, e a sua tentativa de derrubar as forças corporativas e governamentais. O tom sério e pesado do primeiro jogo que encaixa na perfeição nas ruas de Chicago dá lugar a uma narrativa mais descontraída de San Francisco, onde Marcus brilha com todo o seu optimismo e notórias aptidões informáticas e sociais.

Os personagens principais e membros do grupo DedSec são notoriamente caricaturais, mas encaixam na linguagem de Watch Dogs 2. O espírito de herói de acção de WD é substituído pelo subterfúgio e pelo engenho, e percebemos narrativa e mecanicamente que o jogo foi construído para que nós encetemos sempre possível uma abordagem de não-violência. Aliás, toda a simpatia e a coolness de Marcus nos impele a uma abordagem pacífica, intelectual e furtiva a todas as acções que temos de tomar. Se Aiden é um vigilante sem problemas éticos nem morais para causarmos um massacre, Marcus obriga-nos e conduz-nos a utilizar todos os dispositivos à sua disposição para levar os seus objectivos em frente sem ter de derramar sangue. E a inclusão dos drones não só o permite como transforma a série Watch Dogs de um sandbox de acção típico de GTA num jogo mais cerebral, em que as missões são puzzles a ser resolvidos e não uma espécie de massacre histórico do dia de S. Valentim.

Watch Dogs 2 é um jogo de 2016, e não o refiro pelas características técnicas. A incorporação conceptual no próprio mundo daquilo que é a nossa vivência quotidiana é surpreendente, onde o foco primordial das redes sociais e da nossa “vida digital” é mais do que evidente. A par da nossa realidade, o smartphone é para Marcus a peça central de todo o jogo. É lá que controlamos todas as nossas apps de hacker e não só, e é também com ele que tiramos selfies, essa peça existencial que tinha uma vez por todas de ser integrada como mecânica de side quests num jogo em que o telemóvel é o alfa e o ómega de toda a criação e game design.

A realidade é que me continuo a divertir pelo mundo de Watch Dogs 2 tanto como me diverti no primeiro, com a grande diferença que é o tom mais jovial e descomprometido, quase post-milennial, internet cool com jargões típicos das redes sociais que acaba por afastar-me emocionalmente do jogo. Ao contrário do que ouvi um Youtuber dizer numa apresentação na Lisboa Games Week, a verdade não se encontra na internet e o conceito dos DedSec explora isso mesmo. Há muitas camadas de verdade e muitas mentiras, e Watch Dogs 2 na sua abordagem notoriamente inspirada no grupo Anonymous vem dar um outro ponto de vista à realidade, ficcionada, lá está, mas mesmo assim digna de nota.

Watch Dogs 2 não vai ser um dos melhores jogos do género (ou do sub-género, se o entendermos como uma abordagem mais puzzle e cerebral dos jogos sandbox) mas há aqui muito boas ideias que o afastam do mero clone de GTA e acima de tudo da mera sequela do primeiro. Como puderam ver não ficou sequer perto de ser um dos meus jogos do ano mas ainda acho que deve ser experimentado por fãs de mundos abertos, ainda que seja para perceberem que é possível abordar um mundo virtual contemporâneo sem sermos máquinas de matar insensíveis, e levarmos o activismo para onde grande parte das lutas da actualidade estão.