Decorreu no passado fim de semana a Global Game Jam. O evento junta cent… milhares de criadores e aspirantes a criadores de videojogos por todo mundo e Portugal não foi excepção. Idealizado em 2008, 2009 marcaria o arranque deste icónico festival de criação de videojogos que, desde então, tem vindo a crescer ano após ano, juntando multidões para jam sessions em torno de jogos, no seguimento das jams musicais e dos seus principais estandartes: criatividade, improvisação, prazer.

O evento é aberto a todos os interessados, pelo que não têm que ser nenhuns mestre-ninja de uma linguagem de programação ou de modelação. Amalgamados os interessados em grupos de dimensões, competências e aspirações variáveis – embora o espírito de leve determinação e diversão seja transversal a todos – é revelado um tema mantido fechado a sete chaves até ao arranque do evento. Com o tema em mente, os grupos têm 48 horas para produzir um videojogo e apresentá-lo aos seus companheiros de viagem. Não se pretende portanto nenhuma obra-prima acabada com 440 horas de campanha, gravação áudio profissional e animações baseadas em motion capture a 5000 fps. Não é uma maratona, é um sprint. Uma corrida a contra-relógio para idealizar, desenhar, programar, construir e testar um videojogo minimamente jogável com um tema tão inesperado como vago.

Este ano marquei presença na Global Game Jam promovida pelo Núcleo de Estudantes de Computação Gráfica da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto. Sendo que dou aulas de criação de videojogos no Instituto Politécnico da Maia, vou tentando promover, ao longo do curso, o envolvimento dos meus alunos no mercado de desenvolvimento de videojogos. É bom que um curso não se fique só pelo currículo e antes procure activamente envolver os seus alunos no mercado de trabalho, no meio. E, se o tinha feito por alturas do ISMAI Legends, da Lisboa Games Week e da Comic Con, fi-lo também com a Global Game Jam. Incentivei-os a participar e, à falta de melhores argumentos, dei-lhes o que podia para os cativar e motivar a participar: o exemplo. Certo de que, em época de exames, muitos deles estariam ou a estudar ou a gozar algumas merecidas férias em casa, ofereci-lhes o que podia para tentar mobilizar os que por cá ficaram: a minha presença e envolvimento no projecto deles. Embora mais tenham marcado presença, apenas 3 alunos tiveram possibilidade de participar, pelo que me juntei a eles, com algumas reservas. Não pretendo programar. Primeiro, porque não é coisa que queira fazer, depois porque queria que fosse o jogo “deles”. Limitei a minha ajuda ao Game Design, textos, interfaces e audio. Deu para marcar presença ao lado deles na sua primeira jam sem sentir que o trabalho deixava de ser o deles.

A primeira luta foi o tema em si. “Ondas”. Só. Curto e grosso. Sem contextualizações ou esclarecimentos. “Ondas”. Com o grupo possível – dois dos meus valorosos alunos, o Sr. Braga e o Sr. Francisco, uma vez que o Sr. Nuno não podia ir na sexta-feira – sentamo-nos em amena cavaqueira… Brainstrorming, chamam-lhe. Podia ser assim, podia ser assado, podia ser cenas com coisas e tal… Confesso que a primeira coisa que me veio à mente foi o velhinho California Games, lançado no longínquo ano de 1987 e que eu joguei até à exaustão num Commodore Amiga. Ondas? Surf. Música a fazer lembrar os Beach Boys com uma lágrima no canto do olho…

Mas outras ideias surgiram, e, com discussões, cotoveladas e comentários jocosos do nosso mini-grupo, lá enrolamos as nossas cabeças em torno daquilo que viria a tornar-se o Crime Waves.

A ideia é ter-nos na pele de um detective forense, especialista em áudio. A nossa tarefa é ajudar a desvendar crimes filtrando gravações de áudio e delas extraindo as provas necessárias, após cortar várias camadas de ruído que tornam a gravação incompreensível. Como? Remeti-os para um jogo que tinha apresentado algures numa aula – com esta análise aqui no Rubber – Her Story. O interface antiquado de um ecrã de computador, reflectindo luzes de néon brancas por entre um ambiente fumarento, abria-nos a porta para uma investigação por entre centenas de vídeos com a dura tarefa de os ordenar e dali tirar sentido… Foi isso que procuramos trazer para Crime Waves. Um nostálgico e deprimente monitor de um computador com um sistema operativo ultrapassado para servir de base ao nosso processo de investigação.

A primeira noite foi então passada a aprimorar os conceitos. O desenho esquemático dos interfaces, a extrapolação dos problemas que o jogo nos colocaria, a definição de metas, objectivos e entraves e o esqueleto de casos para resolver. Sábado arrancou a programação, já com toda a equipa presente –  menção aqui para o José Gonçalves, que foi atribuído ao nosso grupo mas que depois foi para Coimbra e que acabou por não se envolver mais no projecto, muito por deficiente organização da nossa parte. Já foi difícil articular-nos ali com as nossas disponibilidades e ideias, articular com alguém à distância revelou-se impossível – e o jogo começou, aos poucos, a ganhar forma. Um interface de sistema operativo surgiu, com um ecrã de login, pastas, ficheiros… uma mensagem de email de boas vindas do nosso Chefe a contextualizar a acção e a dar o mote para o desenrolar do jogo. Três casos foram escritos, com diálogos, localizações e contextos – a fim de facilitar a detecção e eliminação dos ruídos. Paralelamente, foi sendo construído um repertório de sons de ruído, para se usar no audio final. E a coisa foi-se fazendo. Com solavancos, turras, improvisos e dificuldades, mas muita boa disposição, muita animação e muitas caras novas a conhecer e com quem trocar ideias.



Ficámos numa das salas reservadas para a GGJ, juntamente com mais 3 grupos que foram humanizando aquela sala a ponto de deixar de ser apenas uma sala com cadeiras, mesas e computadores. Tornou-se uma sala de jam. O quadro foi violentamente abusado com esquissos, esquemas, desenhos, modelos, piropos e brincadeiras. As mesas foram dançando e rodando consoante novas pessoas se iam juntando aos grupos e empurrando outros para lugares adjacentes, numa dança que surgia com a naturalidade do raiar do dia. E, no entanto, no meio daquele caos que ali se foi cultivando, o que dava para ver era gente concentrada. Oh sim, brincava-se, relaxava-se, descansava-se, mas pouco depois os olhos estariam novamente colados aos monitores, a produzir videojogos.

Noutras salas, outros grupos. Gente que havia conhecido no ISMAI Legends apareceu ali, para dar um ar de sua graça, para trabalhar por pura diversão. A lamentar apenas o facto de as salas ficarem tão distantes entre si, o que impediu maiores momentos de convívio e troca de experiências. O convívio, esse, era mantido na sala comum, que, sendo grande, por vezes pareceu pequena para as cerca de 60 pessoas que abraçaram o desafio. A organização cobriu vários flancos, desde o arranque do evento com keynotes pertinentes às refeições, com um agradável e inesperadamente bom catering a alimentar as barrigas vazias e a fomentar a discussão. Comida, bebidas, sobremesas, cafés, muitos cafés… Tudo ali, à mão de semear, num elogio à organização do Núcleo que, ao realizar este evento pela primeira vez, terá falhado em pouco, muito pouco.

Domingo, dia do balanço final. Os stresses de última hora, as alterações de última hora, os erros, escorreganços, correcções e mudanças de última instante. Tudo em contra-relógio, tudo para entregar pelas três da tarde, numa corrida frenética em que funcionalidades e mecânicas previstas para os jogos eram arremessados para o chão, como se roupa de dois sôfregos amantes se tratasse. Objectividade, objectividade! Não dá tempo para A, B e C, faz-se A. E se não for maiúsculo, é um a minúsculo. Há prazos a cumprir! E o objectivo é passar a mensagem.

Os resultados estão aqui.

São 9 jogos – sendo que apenas 8 foram apresentados na sessão formal – o resultado desta Global Game Jam 17, no Porto. Pela minha parte, o melhor jogo terá sido WaveCrash, feito pelo amigo João Jacob, ali mesmo ao lado na nossa sala, rodeado de uma grande e talentosa equipa que rapidamente se organizou a distribuir tarefas. Veteranos nesta senda de jams, fizeram valer a sua experiência na organização e distribuição de tarefas e recursos e produziram um jogo que eu era bem capaz de comprar para jogar lá em casa, havendo modo multijogador. Um planetóide com barcos, orbitado por uma Lua e satélites, por sua vez orbitando um Sol, com os barcos a dispararem projecteis sujeitos às ondas gravitacionais, procurando destruir os barcos inimigos. Visualmente fabuloso, as mecânicas físicas demonstradas prometem umas boas horas agarrado aos comandos, a jogar com amigos ou com os meus putos. Também na nossa sala nasceu Nautilus, um jogo com um conceito pelo qual me apaixonei à primeira vista. Uma guerra de submarinos vista no ecrã de um sonar, repleta de mini-jogos para definir rumo, disparos e desvios… Algo complexo de interiorizar à primeira, mas certamente a merecer uma espreitadela mais atenta. Atomic Rush leva-nos para o fundo do mar, para um side scroller em que somos um peixe. Não teve mecânicas particularmente originais para oferecer, mas visualmente estava um jogo bonito e que, bem trabalhado, pode ser uma oferta sólida no campo dos side scrollers. Cyber Wave foi o único dos jogos apresentados a utilizar o equipamento disponibilizado para eye-tracking. Tecnicamente evoluído, o jogo analisa a música que escolhermos e, com base nesta, faz surgir inimigos que abatemos apontando com os olhos, recorrendo ao dispositivo cedido pela Tobii. Não é um jogo bonito, ainda, mas a base tecnológica que lá está merece desenvolvimentos. I Hear You foi uma interessante proposta de multijogador assimétrico. Um explorador navega numa caverna mergulhada na escuridão, em busca de um ovo que pulsa.  Essas ondas sonoras são visíveis para ele. Do outro lado, um monstro que não pode estar a olhar para o ecrã e que consegue localizar o seu adversário apenas pela direcção do som… A gigantesca aranha vasculha a caverna em busca do explorador e, se o apanhar, mata-o instantaneamente. Interessante e original. Project Brainiac é um platformer 2.5D em que um cérebro manipula o ambiente com ondas cerebrais para conseguir progredir no nível. Naturalmente precisa de uns ajustes, mas trata-se de uma proposta engraçada, com uma arte muito bem trabalhada. O mesmo se pode dizer de Smashzilla!, cuja premissa de destruir cidades com ondas de choque de uma pegada do nosso Godzilla se vê algo sabotada por alguns problemas técnicos mas que tem, sem dúvida, pano para mangas, se explorar devidamente as interacções entre edifícios no mapa para construir ali um puzzle que premeie o jogador que destrua tudo no menor número de patadas. Por último, o “nosso” Crime Waves. Ficou a faltar bastante, ainda, mas algumas ideias on-the-fly na madrugada de domingo surtiram um efeito engraçado. Faltaram as legendas, faltaram mais casos de crime, faltou permitir isolar uma determinada frequência de som para a ouvir antes de a eliminar, mas, no geral, deixou uma boa imagem. Naturalmente, fico orgulhoso dos meus alunos – destes três camaradas que ali marcaram presença e dos outros, que não puderam comparecer mas que acompanho também desde o segundo semestre do seu curso.

 



No final, a sensação de dever cumprido. Não sendo uma competição, o júri ainda assim distinguiu alguns dos jogos apresentados em certas categorias. Não está aqui nenhum jogo pronto para ir para o mercado amanhã e seria idiota desejar isso. Mas está aqui uma prova cabal daquilo que é o talento que manda em Portugal na área dos videojogos. Se em 48 horas, alimentados a café, é possível fazer projectos com este calibre, imagine-se no seio de uma empresa devidamente estruturada e orientada….

E isto é apenas uma pequeníssima amostra do que foi a Global Game Jam este ano. Falo-vos aqui de onde estive. Mas outras houve, em Barcelos, onde esteve o amigo Pedro Nunes: http://globalgamejam.org/2017/jam-sites/barcelos-jam-ipca/games ou em Lisboa, recheadas de amigos e malta conhecida: http://globalgamejam.org/2017/jam-sites/global-game-jam-17-lisbon e http://globalgamejam.org/2017/jam-sites/eticgamejam