Mystery Box é uma rubrica mensal de temas-surpresa aleatórios ligados aos jogos e a outros meios interactivos, digitais e não-digitais, apresentada por Isaque Sanches.

Já ouviu falar de In Memoriam?

In Memoriam é uma série de dois jogos, In Memoriam (ou Missing: Since January) e Evidence: The Last Ritual, criados pelo estúdio francês Lexis Numérique. Os dois jogos foram respectivamente lançados em 2003 (um ano antes de Steam nascer, e dois antes de se tornar numa plataforma de distribuição) e em 2006.

Não é de conhecimento público se o primeiro jogo foi um sucesso em vendas ou não, mas tudo indica que pelo menos o segundo não tenha sido. Desde então, Lexis Numérique dedicou-se a fazer “licensed games” e outros produtos de pouco risco, que pagam a renda.

Ambos os títulos se encontravam à venda em formato físico, e ambos pedem, ao iniciar-se o jogo propriamente dito, após a instalação, um endereço de email (o segundo pede também um número de telefone). Tive contacto com a série quase uma década após o lançamento do primeiro título, e lembro-me de na altura achar o pedido estranho. Sabia que o jogo “era estranho”, e que era um jogo de puzzles, ou assim me contaram. Não me contaram muito mais. Escrevi o meu contacto de email, e carreguei em enviar. Receei que o jogo se tivesse tornado injogável (por exemplo, os servidores estivessem em baixo), mas pouco depois, recebi um email.

O email que recebi dirigia-se a mim, enquanto personagem de jogo e não enquanto jogador, explicava-me o que eu estava a ver no jogo propriamente dito.

Um serial killer raptou alguém e enviou um CD (o CD de jogo) às autoridades, que fizeram cópias e o distribuíram por vários indivíduos (entre eles a minha personagem) para decifrar o conteúdo do mesmo. O CD tinha filmagens da vítima, que se encontravam guardados através de interfaces macabras, peças de arte interativas, que no fundo eram puzzles do serial killer. Para encontrar a pessoa raptada, tínhamos que resolver os enigmas, e ver os vídeos.

O primeiro puzzle com que me deparei pareceu-me obtuso.

No entanto, não me apercebi de nenhuma solução evidente porque não era suposto; o puzzle por si só não se podia resolver. Já não me lembro se o email tinha um link, ou se me sugeria para pesquisar uma palavra que estava no puzzle, mas fui parar à internet. A um site real. No site encontrava-se a pista.

Resolvi o puzzle. Vi um fragmento de vídeo. O serial killer apresentou-me outro puzzle. Procurei novamente na internet. Fui parar a um blog. Encontrei a solução no blog. Resolvi o puzzle, e o ciclo continuou, fui recebendo mais emails do jogo, e foi-se tudo tornando cada vez mais difícil.

No entanto quero sublinhar que o blog não era, na verdade, um blog. Parecia um blog, tinha vários meses de posts, mas não era. Era uma fabricação de Lexis Numérique.

Tanto o blog como a maioria dos sites que o Google me ia sugerindo.

O estúdio criou uma rede de sites falsos (que um não-jogador não suspeitaria de serem falsos) e espalhou-os pela internet.

O jogo é fascinante e perturbador, não só pela imagética e audio macabros, mas pela sua própria estrutura. É fácil atingir-se um ponto em que a realidade e a ficção se tornam quase indistinguíveis, e em que é preciso fazer um esforço para nos lembrarmos que (talvez) nada daquilo é real.

Fez-me sentir vulnerável de uma forma que nunca tinha sentido antes.

Tanto no primeiro jogo (que recomendo) como no segundo (que não desrecomendo) não são os jogadores que entram no mundo do jogo, é o jogo que entra no mundo dos jogadores.

 

 

Artigo submetido por Isaque Sanches