Admito alguma condescendência para com Earthlock: Festival of Magic quando ele nos chegou às mãos. Artisticamente cativante, parti do apriorismo de considerar quase de imediato que o visual poderia ser a única razão para dar alguma oportunidade a este JRPG vindo de terras nórdicas. Felizmente que percebi nos primeiros dez minutos que estava errado.

As pré-concepções que fazemos em relação a alguns jogos são, infelizmente, inevitáveis. Já jogámos dezenas de JRPGs na nossa vida, desde a tenra idade na NES até às verdadeiras enchentes de jogos que ainda vêm do Japão para a Vita.

Quando pensamos em JRPGs é fácil tomarmos a ilação que o “Japanese” que surge no acrónimo se refere ao país de origem. Na realidade a definição do género revolve em torno de características mecânico-conceptuais que ajudam a definir determinado jogo dentro de um espectro específico. Não é portanto incomum termos JRPGs criados fora de território nipónico, sendo que Aurion (vindo dos Camarões), ou Shiness (vindo de França) são apenas dois exemplos de jogos do género que estão ou foram desenvolvidos em locais tão díspares entre si.

Uma explicação simples para este tendência e este transbordo criativo do género para fora das fronteiras japonesas é o facto de que o mercado já integra um gigantesco número de game designers que cresceram enquanto jogadores na era da PlayStation, fase áurea do ponto de vista comercial para os JRPGs que foram a reboque do tremendo sucesso de Final Fantasy VII. Perceber essa influência tão óbvia é justificação directa para esta revivalismo além-fronteiras dos JRPGs, e que clarifica o surgimento de Earthlock: Festival of Magic num país (dito) improvável, a Noruega.

Earthlock é visualmente soberbo e aborda uma estética perfeitamente refrescante para os JRPGs. Longe do traço de descendência do mestre Tezuka, os personagens apresentam uma expressão artística coesa com uma tendência de ilustração europeia, onde a fantasia assume uma mescla com um visual mais próximo do cartoon.

Depois de tantos JRPGs nipónicos quase todos com a mesma linha manga-esq de expressão, jogar um videojogo do género com uma expressão artística completamente distinta e identitariamente sua é mais do que inovadora, é só por isso motivador de entusiasmo para mergulhar nas largas dezenas de horas de jogo que temos pela frente. Mas antes de entrar nas questões mecânicas que são ligeiramente diferentes do que conhecemos, há que enunciar um óptimo ponto (que em muitos jogos, ironicamente, seriam um erro capital): o enredo, ou a falta dele.

Convenhamos: das quase resmas de JRPGs que nos chegam e que já jogámos, percebemos a tendência cultural do género de preencher os espaços vazios com conversa fiada, escamoteando a falta de linha narrativa coesa com uma série de tropes e clichés que nos ludibriam a achar que existe uma história a ser contada, e que mereça sequer a nossa atenção para além de carregarmos no botão de Skip.

Earthlock não incorre nesse erro, e desavergonhadamente assume que a sua história é quase inexistente, definindo apenas umas ideias básicas e pouco sólidas do que está a passar no seu mundo. E deixa atrás das costas os rios de diálogo sensaborão que ocupam artificialmente muitos dos JRPGs, ocupando essa necessidade de esticar o tempo com grinding. Muito grinding até.

Desenganem-se com os habituais one-hit kills de grande parte dos JRPGs, que contam com a repetição exaustiva como recurso ao tão precioso XP. Em Earthlock quase todas as lutas são desafiantes, até os random encounters que temos com os monstros nas dungeons ou World Map, que apesar de serem visíveis contam com uma táctica de nos obrigar a lutar com o máximo de criaturas possível para bonificações de XP.

O número de vezes que percebi a meio de uma luta com os típicos (mas visualmente soberbos) insectos e criaturas plantiformes que a coisa estava mal parada e que precisava de fugir foi demasiado grande. Um jogo onde as boss battles são muito frequentes, sempre com a certeza de que são um verdadeiro pesadelo de dificuldade. O que não é de estranhar num jogo que nos exige imenso grind, mas que até nesse acto temos uma dificuldade muito superior ao que estamos habituados.

Em termos de combate, Earthlock adiciona 2 factores ligeiramente fora da normal do simples conceito de Turn-Based, ao adicionar stances (ofensivas/defensivas, ranged/melee) aos personagens, que consomem um turno quando alteradas, para além de utilizar os tradicionais conceitos de afinidade entre personagens para desenvolver ataques e buffs conjuntos.

Earthlock é quase vazio de storytelling (o que até funciona a seu favor), mas compensa com uma brilhante direcção artística, que nos deixará para sempre uma marca na memória do género. E é a prova de que há muita experimentação a fazer-se em torno de um género aparentemente hermético como os JRPGs, com margem para reinterpretações, homenagens e recriações que venham distanciar-se da zona de conforto de mais de trinta anos de produção.