Quatro da manhã. Já havia fechado os estores e tentava adormecer, sem sucesso, há três horas. Rebolo na cama como um chinchila rebola em areia, no seu ritual de preservação higiénica. Cansado de tal rotina, decido ligar o computador e jogar qualquer coisa: quantas e quantas vezes não adormeci a fazer grind da minha equipa em Pokémon, com outro jogo qualquer terá o mesmo efeito certamente.

Mas estava equivocado. Liguei Cosmic Express, o mais recente jogo que pesquei para análise, e, como castigo pelos meus pecados ao longo dos dias (todo o trabalho que não realizei para a tese, todos os últimos aperitivos em pratos e taças que comi sem perguntar se alguém queria), actuou como um café expresso no meu organismo.

Aqueles que me conhecem sabem bem a minha preferência no que toca a administração de cafeína no meu corpo: “Um abatanado cheio, por favor”. Muitos apelidam-no de parvoíce mas, neste país que é nosso e tem dos melhores cafés na Europa, desde o dia em que fiz a figura tola de pedir “Tire-me um café com mais água” e me responderam “Um abatanado?” vim a entender que não só não é parvoíce, como é a melhor forma de beber café: não simplesmente por ser uma bebida mais alongada, que mais facilmente acompanha o ritmo da conversa da nossa companhia, como é menos violento para o estômago. Esta violência não se nota a beber abatanados mas a beber um expresso quando abatanados, mais que uma mania, são uma rotina gostosa. Nessa altura, qualquer expresso que entre, cai como uma pedra no estômago e implanta no nosso sistema uma azia como muitos que participaram em concursos de comer farturas cozinhadas em óleo de girassol Fula que não é mudado há oito meses nunca viram. Mas a azia proporcionada por Cosmic Express está além de qualquer expresso a cortar o hábito dos abatanados. Convenientemente, chamei-lhe Expresso Cósmico.

Beber este Expresso Cósmico vai induzir-nos numa experiência extra-sensorial onde, como forma de atravessar um arquipélago de cápsulas identadas, onde criaturas alienígenas precisam de ser transportadas por nós até sua cómoda habitação, temos de desenhar linhas para podermos conduzir um comboio com um número limitado de passageiros. No processo de desenho das linhas para as nossas carruagens, uma regra simples se aplica: não podemos cruzar linhas. Trabalhamos novamente com puzzles em grelhas, facilmente transladáveis para problemas de grafos (nos quais MiniMetroThe Witness também se incluem e, na minha opinião, dos tipos de puzzle que conseguem ser mais complicados – mais exemplos e bons frameworks para fazer jogos de puzzle aqui).

Podem contar com mais de 120 níveis, estes divididos de forma não linear por constelações em que cada uma delas é introduzida uma nova mecânica: mais uma carruagem, uma nova raça alienígena, obstruções, entre outros. A dificuldade varia de forma não uniforme ao longo destes níveis, uma vez que, como já foi referido, o progresso não é linear: existe sempre (ou quase sempre) um número de níveis por resolver maior que um e iterar entre esses níveis por resolver é, na verdade, recomendado por surtir efeitos semelhantes a um Kompensan. Muitos destes puzzles conseguem ser complicadíssimos, principalmente se a nossa abordagem se mantiver a mesma ao longo da sessão. Por vezes, a melhor forma de progredir no jogo é negligenciar o efeito anti-sono que em nós provoca, ir dormir, e voltar no dia seguinte com a cabeça fresca. Porém, o verdadeiro desafio reside na última constelação do jogo (também a maior) e posso-vos garantir que essa sim, é de loucos.

O aspecto do jogo é extremamente apelativo e adequado: não só ajuda a criar uma harmonia visual pacifista, contrastando com o tipo de sentimentos mais plausíveis de induzir, como é simples e claro. A escolha de determinados elementos proporciona a fácil aprendizagem dos objectivos e mecânicas, excluindo a necessidade de tutoriais. De igual forma a banda sonora o acompanha, fazendo com que, no final do dia, um Expresso Cósmico seja a melhor forma de revigorar a nossa presença no mundo real: não só proporciona uma pausa relaxante, como após alguns minutos faz com que o nosso cérebro retome actividade.

Cosmic Express é, acima de mais um jogo mobile portado para computador, excelente. Não só apresenta um bom desafio numa tela original, como todas as componentes que o compõem apontam para o sentido certo. Deixa também de fora tudo aquilo que não o iria beneficiar e isso é uma variável importante para o nosso sentido de missão (muitos dos indies que vimos passar no Rubber Chicken nos últimos tempos contam com funções de multiplayer onlinelevel creator que acabam por se revelar inúteis pela inactividade da comunidade). Um dos meus novos jogos puzzle preferidos, que guardarei com amor bem juntinho de Mini MetroSnakeBird.

Cosmic Express está disponível no Steam (Windows e Mac) por 9,99€ e na App (iPhone e iPad) e Play Store (dispositivos Android) por 4,99€. Todas as versões são iguais.