Este não é um artigo de despedida. O título e a música do Paulo de Carvalho podem soar a isso, mas é antes uma reflexão pelo octingentésimo artigo que escrevo no Rubber, 4 anos e uns meses depois de ter sido aceite na equipa. Uma média de duzentos e qualquer coisa artigos por ano que têm muito para dizer para além do que está publicado. Este artigo para além de uma auto-reflexão sobre mim, cortando um pouco com o foco habitual dos meus artigos, é também uma reflexão pela escrita sobre videojogos. Desde os artigos escritos na sala de partos nas longas 36 horas em que durou o nascimento do meu filho, passando por artigos manuscritos em concertos e em jantares de família, porque o mundo dos videojogos não pára e a escrita sobre videojogos também não.

A evolução natural

Muito mudou e muito mudei desde o primeiro artigo no Rubber. Facilmente diria que à época eu pensava muito sobre videojogos mas não pensava videojogos. As minhas leituras centravam-se muito nos sites que confiava – Destructioid, Polygon, Rock, Paper, Shotgun, Kotaku e Rubber Chicken – e na única revista que ainda hoje me acompanha, mas agora em formato digital: a Edge. Entre a submissão de um artigo para o Rubber sob empurrão da minha mulher, e conhecer o fundador da Galinha, o Miguel Tomar Nogueira, foi um ápice. Fui aceite, com surpresa minha, para colmatar uma falha na equipa que necessitava de um maior foco na Nintendo, essa companhia do qual eu sempre foi (e acredito que sempre venha a ser) um tremendo fanboy.

O Rubber não tinha (nem tem, nem alguma vez terá) a dimensão dos restantes sites que acompanhava (e que acompanho, à excepção do Kotaku que seguiu um caminho divergente do meu gosto), mas cedo o sentimento de pertença e o trabalho diário na e com a redacção surtiu efeitos ainda maiores. Sendo que o maior de todos foi a minha redenção ao mercado indie, do qual acabei por tornar-me um acérrimo militante.

O meu primeiro artigo no Rubber, depois de ter oficialmente sido aceite na equipa no final da MEO XL Party de 2012.

Acabei por sentir um contágio múltiplo e uma grande evolução não só da minha forma de escrita (depois de anos a escrever quase exclusivamente poesia) como do meu foco de atenção, e o que há anos sentia com a música (em que o prog e o experimental suplantavam qualquer coisa que tivesse um mínimo de laivo comercial) acabou por espalhar-se para os videojogos, e desde cedo que o interesse no mercado mainstream de videojogos foi quase definhando e dando espaço para uma busca incessante de jogos indie.

Chafurdar na lama, desenterrar diamantes

Recebemos muitos jogos, muitos mesmo, e há uma postura ideológica da nossa parte – e que faz parte da minha direcção editorial – de que todos os jogos têm que ter igualdade de oportunidades. Quer isto dizer que tentamos olhar para todos com o mesmo olhar isento, seja o blockbuster bilionário do pequeno jogo indie feito por um estudante de 16 anos sozinho. Nenhum tem prioridade sobre outro e todos têm o mesmo respeito da nossa parte, o que justifica o facto de que grande parte do nosso conteúdo – especialmente o meu – se remete a muitos jogos indie que não têm um único artigo escrito na internet sem ser o nosso, mas que muitas vezes apesar de serem verdadeiramente medianos, merecem que lhes seja dada a atenção devida.

Para um indie developer isto importa. Esta militância, esta igualdade entre o pequeno e o gigante, e o respeito pelo trabalho dos outros. Mesmo quando esse indie pequeno acaba por ser um péssimo jogo, mas merece a nossa palavra, mostrando que o envio de uma key e esta vontade de mostrar um jogo que ninguém ouviu falar e pouca gente quer falar por dar poucos cliques se sobrepõe, para nós, ao mero regurgitar de Press Releases de grandes companhias que milhentos outros sites fazem.

Este chafurdar na lama, porque convenhamos, muito do que recebemos é de mediano a mau, tem um ponto positivo, que já aconteceu a grande parte da equipa do Rubber: encontrar aquele diamante inesperado a partir de “mais uma key para review”. Aquele jogo que ninguém falou, que nós “descobrimos” e que é uma verdadeira maravilha. É o Thea the Awakening do João, é o Sprinter do Bernardo, é o meu Eggggg, Aviary Attorney e o Rivers of Alice e tantos outros escondidos num turbilhão de jogos que ocupam (muitas vezes de forma ilegítima) o espaço mediático.

Oitocentos artigos depois e mais de mil e duzentos jogos recebidos diria que esta descoberta de maravilhas escondidas, este espaço privilegiado para conhecer e receber no primeiro balcão o que de melhor se vai fazendo atrás das cortinas é certamente um dos pontos mais positivos de quatro anos de trabalho intenso e de muitos, muitos sacrifícios.

O mercado, internacional e nacional

Já risquei da minha lista pessoal conhecer grande parte dos meus ídolos dos videojogos. Sim, é possível ser fanboy, ter idolatrias, e ao mesmo tempo utilizar essa paixão e segmentar a isenção de um lado do facciosimo para o outro, e utilizar o entusiasmo como combustível ao funcionamento.

Esta é uma recompensa emocional, o facto de ter conhecido algumas das pessoas que fizeram (e fazem) o mercado dos videojogos e ter tido a oportunidade de os conhecer e de privar com elas, e em alguns casos criar um relacionamento de amizade que ultrapassa a relação crítico/criticado.Mais do que o simples prazer de tirar uma selfie com o x ou y, são os momentos com as câmaras e os microfones desligados, os e-mails e os SMS trocados, as conversas sobre o mercado dos videojogos e o état de l’árt que têm a verdadeira significância.

E isto deve-se ao respeito que o Rubber Chicken já tinha para com developers e editoras, dentro e fora de portas, e que foi a minha e (a nossa) missão manter e progredir dentro dos possíveis, aliado ao sacrifício financeiro, familiar e até de saúde que as viagens e as muitas feiras visitadas acarretam. Mas no final, passada a extenuação fica sempre a certeza: valeu a pena. Não apenas pelos contactos e a proximidade com os nossos ídolos, mas com toda a gente que constitui o mercado e que compartilha da mesma paixão que nós temos.

As pessoas

Em extensão, e não me refiro apenas aos ídolos dos quais falei atrás. Sob pena de incorrer no cliché Miss Universo admito que depois de todo este cansaço de quatro anos e cinco meses e oitocentos artigos publicados são mesmo as pessoas que valem a pena. O que me é mais ou menos irónico dentro da minha auto-reconhecida hiper-empatia e auto-pressuposta misantropia. São as pessoas que chegam, que ficam e as que partem. São os fundadores do Rubber, o Miguel, o Frederico e o André que gentilmente me passaram este bebé para o colo, com a certeza que tratá-lo-ia tão bem como acredito que tenho tratado. As muitas pessoas que eu não conhecia e que concorreram ao Rubber e que acabaram por entrar não só na redacção mas também na minha alma, e algumas ficaram num sítio ou noutro, e algumas em nenhum, mas todas marcaram a sua presença de alguma forma. São os meus melhores amigos de sempre que cedo ou tarde foram enriquecendo as fileiras do Rubber e que abraçaram o projecto comigo. São os gigantescos amigos que possuo hoje e que cresceram como tal dentro do total anonimato vindo do trabalho de redacção entre editor e redactores. São os colegas de media, PRs, developers, entusiastas, organizadores de eventos, estudantes e leitores com os quais me fui cruzando ao longo destes ricos quatro anos e que contribuíram para a minha evolução enquanto pensador e crítico sobre videojogos, e que souberam enriquecer o discurso e o debate, seja comigo seja com o Rubber enquanto entidade colectiva. É a minha mulher e o meu filho que partilham esta paixão dos videojogos e que respeitam algumas ausências pelo Rubber Chicken e apoiam cada passo dado.

São as pessoas. O mais importante têm mesmo sido as pessoas e são essas acima de tudo que têm feito estes quatro anos valerem muito, muito a pena.

E amanhã?

A última frase escrita pelo meu escritor favorito de sempre (e que acredito ser o maior escritor da Humanidade) dizia “I know not what tomorrow will bring”. Reduzindo-me à minha microscopia quando comparado com Pessoa, tenho de assumir a sua frase como minha. Sei alguns projectos que ficaram em standby pelo Rubber, do qual o meu Doutoramento é o maior de todos, assim como sei os álbuns de Banda-Desenhada que ficaram por desenhar e as músicas por compor, cantar e gravar.

Portanto sei também que o meu futuro está definitivamente interligado com os videojogos, seja na escrita, crítica e reflexão com o Rubber Chicken (e os parceiros Observador e RTP Arena), seja pelo desenvolvimento com o Indigent Studio, seja pela organização de eventos com a LGW, LGC e Indie Dome, sejam pelos muitos projectos relacionados com videojogos e que estão a ser cozinhados agora com algum secretismo ou seja como mero apaixonado pelos videojogos e como jogador, esse último vértice da pentarquia que muitas vezes parece ficar relegado por todos os outros papéis.

Quando passei a co-editor o Miguel Tomar Nogueira disse-me que o Rubber tem existência própria e que não depende de nenhum de nós. Eu acredito definitivamente nisso. Acredito no valor que o Rubber Chicken tem e que apesar da sua estrutura galinácea tem identidade para voar por si só, sem dependências de pessoas específicas. O Miguel (e o André, e o Frederico) acabariam por sair, e demonstraram a total independência do Rubber Chicken perante qualquer um. Depois de quatro anos e cinco meses e oitocentos artigos, milhares de horas de trabalho, milhares de euros gastos, eu tenho a certeza que poderá chegar um dia em que talvez também eu venha a abandonar o Rubber sabendo que ele ficará em boas mãos e que a sua voz continuará a fazer-se ouvir, isenta e sólida como sempre.

Mas esse dia não é hoje. Segundo o Ricardo Mota ainda tenho mais 1600 artigos para escrever. Talvez seja verdade, mas ao ritmo com que tenha escrito talvez isso seja cumprido noutros quatro anos.

Os videojogos são uma paixão e sei que o caminho depois destes oitocentos artigos no Rubber Chicken passam invariavelmente por aqui. Pela escrita, pelo estudo, pelo desenvolvimento, pela discussão, pela crítica, pela paixão, pela organização, pela divulgação, pelo confronto. Porque os videojogos merecem e a minha existência está definitivamente interligada a eles.

“Venham mais oitocentos”, se o Zeca me permite a apropriação e alteração da sua canção. Venha sempre o Rubber a quem tanto devo nestes quatro anos e cinco meses de união. Mas venham acima de tudo os videojogos. Sempre.