Há muito tempo atrás, numa galáxia muito, muito distante… DayZ era lançado em fase Alpha.
E, quase quatro anos depois, o projecto de Dean Hall, portado do Arma 3, ainda se mantém em Alpha.

DayZ é um caso paradigmático de Early Access que acaba por prejudicar o consumidor que apoia o projecto na sua fase crítica e depois se vê privado de usufruir em pleno daquilo que pagou. Quatro anos depois, DayZ continua longe de uma fase Beta satisfatória. Continua incompleto, continua com bugs, continua com mecânicas desconexas e mal feitas. Continua mal optimizado também. E, no entanto, enterrei alegremente mais de 150 horas neste jogo, sempre com prazer. E, volta e meia, reinstalo-o e volto a mergulhar de corpo e alma em Chernarus para me inteirar do estado de desenvolvimento em que o jogo se encontra, desiludindo-me por continuar a vislumbrar uma fase Beta ou Final ainda muito, muito distante, mas, ao mesmo tempo, adorando cada segundo que passo no jogo.

DayZ é assim. Quem passa pelos cortes dos espinheiros e do aviso em letras garrafais a dizer “WARNING: THIS GAME IS EARLY ACCESS ALPHA. PLEASE DO NOT PURCHASE IT UNLESS YOU WANT TO ACTIVELY SUPPORT DEVELOPMENT OF THE GAME AND ARE PREPARED TO HANDLE WITH SERIOUS ISSUES AND POSSIBLE INTERRUPTIONS OF GAME FUNCTIONING.” sabe mais ou menos ao que vem. Pessoalmente, embora me revolte com cada atraso, cada erro nos prazos, cada retrocesso, continuo a achar que está por aqui um jogo fantástico a surgir como farol de realismo e dificuldade num mundo em que os jogos caminharam na direcção oposta, do facilitismo e do imediatismo, como ainda recentemente o Matthieu mencionou.

Em DayZ acordamos algures numa praia. Sapatos, umas calças, uma T-shirt e um par de punhos. E é isso. Está feita a apresentação. Desemerdem-se. Sobrevivam. Comam, bebam, mantenham-se quentes e longe dos potenciais perigos. Chernarus situa-se algures na Europa de Leste e terá sido abandonada – ou esvaziada por vagas de Zombies – pelos anos 70 ou 80. Inspirada em locais reais, Chernarus é uma província com cerca de 225 Km2, com perto de 350Km de estradas a ligarem quase 50 localidades, com várias bases militares e aeródromos. Percebe-se a demora em ultimar o projecto. Há perto de um milhão de objectos 3D a povoar esse mapa que serve de cenário a um dos meus Survival Games de eleição.

DayZé difícil! E eu gosto disso. Acordamos com fome. Há que buscar comida. Zombies deambulam pelos esqueletos de casas abandonadas. Há que buscar algo que possa ajudar-nos a defender dos seus ataques. Há que buscar protecção para os seus ataques. E há que manter-nos hidratados também. Mas DayZ é mais, muito mais que o vasculhar por comida e roupa enquanto se espreita pelo ombro temendo zombies. DayZ vive, sobretudo, do contacto com humanos. Os zombies são previsíveis. Vêem-nos e é um ver se te avias a correr até nós, de braços esticados a arrancar nacos de chicha. Os humanos são diferentes e são eles – e o conjunto enorme de mecânicas e interacções que DayZ permite – que realmente dão toda a cor e sal a este jogo. Que fazer perante um humano? Não há resposta certa. Nunca sabemos o que vem lá. Podemos ver um outro humano como potencial agressor, como parceiro, ou como presa. Podemos atacar, defender-nos, interagir proactivamente, esconder-nos ou montar-lhe armadilhas. Podemos ameaçá-lo e coagi-lo a fazer o que quisermos. E é tudo isto que torna DayZ uma experiência fabulosa.

Encalhado… tipo, sei lá, o DayZ.

A raiz de tudo está na vertente permadeath do jogo. Temperada com a dificuldade de sobreviver, entre alimentação, água, defesa e evasão, a única coisa verdadeiramente fácil no jogo é morrer. E morrer coloca-nos de volta à estaca zero. Numa praia, com fome, com uns ténis e umas calças de ganga meio coçadas. Isso faz com que o investimento na personagem ganhe outra importância. E, paralelamente, torna cada potencial encontro com a morte um verdadeiro turbilhão no estômago. Oh, é possível sobreviver durante várias semanas com a mesma personagem, como se de um Tamagotchi dos tempos modernos se tratasse. Bem alimentado, bem hidratado, com roupagem camuflada, com uma boa arma nas mãos, comida na bagagem e munição suficiente para rivalizar com o S. João do Porto em termos de fogo de artifício. E, no entanto, 15 gramas de chumbo são suficientes para isso se esfumar num breve momento em que primeiro ouvimos o choque de uma bala no nosso capacete, seguido, instantaneamente, do baque da bala a embater na parede atrás de nós e, enquanto caímos inanimados, o ruído do tiro, ao longe, certeiro e mortífero. Três momentos que são um só e que marcam também o reinício de um jogo. Não se pense que é fácil um tiro daqueles. Apesar de ser possível acertar tiros perto dos 2000 metros, o máximo que logrei atingir andou perto dos 1800 metros, e com muita – MUITA – preparação da minha parte, com uma boa mira em boas condições, com um Range Finder para medir as distâncias e com o ajuste da zeroing distance da mira da minha Mosin 9130. DayZ não é jogo para pressas e para a acção frenética de Battle Royale como PLAYERUNKNOWN’S BATTLEGROUNDS ou H1Z1… Se esses jogos estão para um cigarro fumado em ritmo apressado, DayZ estará, dentro do mesmo género, mais próximo para um bom charuto cubano. Semelhantes, mas vincadamente diferentes. E dá para saborear esses lentos momentos de preparação de um tiro. Perscrutar o horizonte com uns binóculos meio riscados, ver um conjunto de pessoas armadas ou um solitário de arma em riste, esconder, medir a distância, ajustar a mira, apontar, suster a respiração, premir o gatilho e… um rápido suster de respiração enquanto admiramos a trajectória da bala naquela fracção de segundo para ver se o tiro acertou ou se falhou e somos obrigados a aferrolhar nova bala e remirar, desta feita para um alvo que deixou de ser um incauto transeunte e passou a ser um inimigo de sobreaviso. E, claro, rezar para que zombies não tenham sido alertados pelo ecoar da pólvora.


É que isso deve ser tido em conta. Nem todas as interacções em DayZ são agressivas. Aliás, posso dizer que a larga maioria das interacções que tive por lá foram amigáveis, beneficiando de uma agradável localização-orientação de VOIP e de um conjunto de sinais com as mãos, que vão desde acenos a rendições, passando por insultos e indicações e do risco que todos os que povoam aquele jogo sabem existir: o som de um conflito atrai zombies e, possivelmente, mais humanos que, ouvindo tiros, não entram em cena propriamente a acenar as boas vindas. DayZ traz isso. Traz bluff. Traz alguma cooperação forçada ou, apenas, de genuína confraternização e partilha.

Lembro-me de certa história que se passou comigo há um bom tempo atrás – na altura em que a Alpha do jogo nos permitia encontrar camiões, raros veículos de transporte, em perfeitas condições de utilização, algo raro nos dias que correm, em que somos brindados com um conjunto de peças soltas, combustível, filtros e demais apetrechos para poder reparar determinados veículos SE conseguirmos encontrar o necessário. Encontrava-me a morrer à fome, perto de um vilarejo, havendo cavado o solo, plantado e regado a minha pequena horta improvisada, aguardando que perto de uma dezena de minutos passasse para poder colher os míseros frutos do meu labor e trincar um conjunto de pepinos e abóboras entre as que se safassem da colheita, uma vez que não tinha pesticida para evitar que alguns apodrecessem (o que por si só já é um sinal da complexidade que o jogo ostenta com orgulho). Ali me encontrava eu, de estômago vazio, com o ecrã a ir perdendo cor, sinónimo de vitalidade, para o meu pequeno mundo a preto e branco, envergando uma caçadeira sem balas e uma pistola que, tendo balas, não tinha o pente necessário e que, por isso, me exigia uma recarga manual de uma bala após disparado o único tiro no cano.

Sou capaz de ter morto uns 2 ou 3…

E eis que, no horizonte, surge um indivíduo. Camuflado, arma automática na mão, com mira. Um capacete. Com a confiança de quem anda pelo meio da rua de arma em punho. Lutar seria virtualmente suicídio. Saio, acenando o braço e uso o microfone “Hey there!”. Ele segue a origem do som até onde me encontro, e vê-me com a caçadeira nas costas. Responde-me com uma pergunta que vai sendo habitual… “Precisas de algo?”. Respondo que sim, de comida. Ele coloca duas latas de atum no chão, eu aproximo-me e há todas as alternativas me surgem como possíveis. Vulnerável, no tempo em que me encontro a ingerir a comida, ele pode apontar e matar-me. Mas não. “Este camião é teu?”. Medo. Ele pode roubar-mo só porque sim. Ou, pior, pode matar-me e roubar-mo. “É”. “Nice… podes dar-me uma boleia até Berezino?”. E assim, alimentado e recomposto, lá fomos nós, um duo improvável de desconhecidos, galgando a estrada entre Gorka e Berezino a conversar sobre o que faríamos depois. Chegados lá, saiu do camião, agradeceu, foi ter com um amigo dele e eu segui viagem para Norte, até Svetlojarsk, onde tinha um amigo à espera também.

É apenas um momento, mas é um daqueles que dificilmente esquecerei na minha história de jogador. No extremo oposto, tenho um outro, que contarei também. Sozinho a deambular por uma área militar e razoavelmente equipado, entro numa caserna e, obsessivo-compulsivo como o jogo nos ensina a ser, usando o meu Kit de Lockpick, tranco imediatamente a porta de saída atrás de mim, para vasculhar a caserna em segurança. Viro costas e, na terceira porta, vejo uma pessoa a sair de lá, encarar-me e encetar o lento e laborioso processo em que se retira uma arma das costas e se empunha a mesma. Dá para pensar em tudo. Vou morrer! Mesmo que eu tire agora a minha arma, a dele vai estar pronta a disparar antes da minha, que eu ainda tenho o kit que usei para trancar a porta na mão. Grito “FRIENDLY!”, e ele falha o primeiro tiro. Corro para a casa de banho, imediatamente ao lado, e fecho a porta. É uma casa de banho fria, de azulejo azul, com um espelho partido e com umas divisórias. Escondo-me numa, tiro a minha arma – a mesma que já mencionei aqui, uma Mosin 9130, terrivelmente inadequada para combate àquela distância, a mesma que ele envergava – e espreito, enquanto grito “I’M FRIENDLY! YOU CAN LEAVE!”… só que não podia. Eu havia trancado a porta para o exterior. Ele tentou. Passou da esquerda para a direita da porta do WC e abriu a porta deste. Terá procurado abrir a que dá acesso ao exterior, mas não conseguiu. Ficámos ambos ali, a envergar uma arma que tem perto de 2 segundos de recarga entre cada tiro, cada um encolhido em menos de um metro quadrado e eu a debitar ao microfone “I’m Ok, i don’t need anything from you, i’m friendly, you can leave”. O que se seguiu foram os momentos mais tensos que alguma vez tive desde que jogo videojogos – e por isso, anos depois, ainda me lembro deles com este detalhe, e aproveito para aqui os escrever, para mais tarde recordar.

Terão passado mais de 40 ou 50 segundos? Mais? Menos? É difícil precisar a contagem do tempo quando um jogo nos põe literalmente o coração aos saltos. Sim, é só uma vida virtual, mas estavam ali mais de 2 semanas em torno daquela personagem, com perto de uma hora diária. E um tiro deitaria tudo a perder. Espreito e mantenho a arma apontada à porta, protegido pela parede. Ele salta para a esquerda e dispara, eu disparo por reflexo. Falhámos ambos. Volto a gritar que não precisamos de fazer aquilo, eu deixo-o sair, enquanto aferrolhamos nova bala na câmara. Ele salta para a direita a disparar de novo. A arma é péssima para aquilo. Ambos falhámos novamente. Duas balas. o meu clip tem 5. Faltam-me 3. A ele faltarão 2, se ele entretanto não recarregou um clip inteiro. Novos momentos de tensão, nova tentativa, novos tiros a ecoar. À quarta, um dos tiros acerta e um dos corpos fica inanimado no chão. Ainda vivo. Aproximo-me dele, aponto para a cabeça e termino com a coisa. Há pouco para roubar, pouco que me possa ser útil, uma vez que, no DayZ, os tiros que disparamos contra os inimigos podem destruir aquilo que eles possuem. Destruí-lhe o colete à prova de bala e parte do que este continha. De coração ainda a palpitar, entre a satisfação e a resignação, apanho o que posso e saio dali, antes que outros venham investigar que tiros foram aqueles.

A imagem não é minha, mas é tirada na casa de banho que descrevi acima.

São dois momentos marcantes que poucos jogos conseguem proporcionar. Oh, eu joguei grande parte dos FPS do passado e da actualidade. Mas nada, nenhum jogo consegue transmitir a tensão que aquele tiroteio em câmara lenta, em que cada tiro pode ser o último e deitar semanas a perder, conseguiu transmitir. E é por isso que se torna difícil não adorar DayZ, mesmo não sendo este um FPS propriamente dito.

Nos servidores com ciclo Dia/Noite, a tensão acentua-se durante a noite.

De notar que, como disse, os tiros podem destruir equipamento precioso. Ora, se a necessidade aguça o engenho, o jogo deixa-nos ser deliciosamente engenhosos. Armadilhas como cantis com água envenenada iam surgindo, aqui e ali. Na ausência de determinados tratamentos, seria despoletada uma lenta e agonizante caminhada para a desidratação e inconsciência, com os culpados a roubarem o que resta do nosso corpo e a terminarem o serviço depois de nos acompanharem à distância. Outros, depois de uma emboscada bem sucedida e mediante a rendição de outros, caem em rocambolescas situações, que passam pelo roubo de itens e… de sangue. Feito um teste para provar uma possível compatibilidade, muitos se vêem, indefesos e algemados, drenados do seu sangue que, armazenado em convenientes sacos com o devido rótulo, servem depois para repor o sangue perdido com os ferimentos, curando assim a tal visão a preto e branco de forma célere. Em DayZ, um indivíduo saudável tem 5l de sangue. Com meio litro de sangue, caímos inconscientes. Uma transfusão bem sucedida permite repor 2,5l. Um recurso precioso, portanto.


Mas nem toda a morte e destruição tem sentido. Por vezes, basta um reflexo daquilo que a humanidade pode ser. Por vezes, a crueldade e o sadismo também surgem. E é bom haver jogos que permitam experienciar isso também. Conto-vos nova história que ilustra isto. Jogava com um amigo. Ele tinha morrido há pouco tempo e eu ia encontrar-me com ele, para o levar até um reservatório nosso, onde tínhamos armazenadas armas, roupa e comida. Ainda longe de mim, ele é apanhado por um grupo armado. Acabado de nascer e desarmado, rende-se. Colocam-lhe um saco na cabeça para que não visse. Algemam-no, enquanto conversam entre eles em francês. Antes de dizerem “au revoir”, dão-lhe um tiro numa perna, quebrando-lhe um osso e prostrando-o. Aqui entre nós, a coisa foi hilariante. Mas, ao mesmo tempo, inquietante. Era um grupo de 3 ou 4 jogadores, armados até aos dentes. Nada tinham a ganhar com molestar alguém que envergava apenas as proverbiais calças e t-shirt. E, no entanto, ali o deixaram, a sangrar, sem se poder mover, de mãos algemadas e sem poder ver. Havia uma solução rápida, que era disconnect e aquela personagem morreria. Mas optámos por tentar salvá-la, e o meu amigo aguentou até que eu lá chegasse, uns penosos 10 minutos depois. Munido de uma tala improvisada, “curámos-lhe” a perna e, minutos mais tarde, estávamos a caminho. Mas é, sem dúvida, mais um episódio marcante que espero que sirva para ilustrar da melhor forma aquilo que este jogo tem para dar.

A conclusão deste jogo virá numa longínqua manhã de nevoeiro…

Incompleto, como disse, vítima de um moroso processo de desenvolvimento em early-access, DayZ está muito, muito longe de vir a estar acabado. E, no entanto, nunca dei o que paguei por ele como perdido. E a única coisa que lamento é que não haja mais deste tipo de jogos em que a dificuldade seja assumida, minimamente realista, sem dar em demasia a mãozinha ao jogador. Obrigado, DayZ. E detesto-te, DayZ. E… vê se ficas pronto, DayZ. É provável que, quando finalmente fores lançado como produto acabado, esse motor de jogo esteja já obsoleto e sido substituído por coisas bem mais eficientes e vistosas. Mas, raios… gostava MESMO de ver este projecto concluído.

 

ADENDA – Nem de propósito, a gente boa por detrás do desenvolvimento do DayZ anunciou recentemente um novo patch e um revigorado caminho para… (calma)… uma fase Beta!

[Todas as imagens aqui presentes, bem como todos os testes realizados com DayZ  foram realizados na máquina fornecida pela Alientech, a ALIENTECH RUBBERCHICKEN, cujos specs podem verificar aqui.]