Caçada Semanal #80

Se pudesse inventariar por ordem de preferência tipos de perspectivas e projecções, diria que as isometrias e dimetrias estariam em primeiro, seguidas de cónicas e projecções ortogonais. Mas talvez isto seja a minha profunda paixão por geometria a falar mais alto.

A primeira pessoa não é o meu ponto de vista favorito possivelmente por ser o que uso em todos os instantes. Às vezes gostava de poder trocar e ver-me num contra-picado só para ter aquela ideia dinâmica de gigantismo, ou ver-me em plano picado para perceber se estou bem penteado ou se tenho caspa no colarinho do blazer. Ou vá, até ver-me na terceira pessoa em algumas actividades mais físicas, como se fosse o realizador da minha própria vida.

Mas não. À semelhança de grande parte dos jogos feitos em Unity ou Unreal, a nossa vida tem que ser vista na primeira pessoa. Como os 3 indies que trazemos esta semana.

The Crow’s Eye

O Amnesia abriu uma porta importante para um segmento de indie game dev. O sucesso que teve especialmente com a comunidade Youtuber, permitiu que o segmento do terror (mais ou menos gráfico, e mais ou menos narrativo) tivesse um espaço próprio.

Depois de uma verdadeira enchente de jogos vomitados para as contas de e-mail de Youtubers na senda tresloucada de reproduzir o sucesso comercial de Amnesia, Outlast ou Five Nights at Freddy’s, os jump scares baratos instalaram-se definitivamente e era quase impossível dar um passo no Steam se nos cruzarmos com um jogo de terror na primeira pessoa.

Tudo muito negro, tudo muito “assustador”, mas tudo igualmente insípido. O mercado acabaria por retrair-se desta fúria efusiva de jogos de terror. E esse afastamento permitiu que jogos como este The Crow’s Eye surgissem desligados desse peso e dessa saturação do mercado, e se pudessem centrar num jogo em que a história e o ambiente criassem aquele temor atrás do peito, ao invés dos sustos pueris que aprendemos a fazer desde pequenos.

https://www.youtube.com/watch?v=7ayFlov8d7Q

Waking the Glares

Ali atrás não falei, mas The Crow’s Eye tem o condão de trazer para a equação do medo os puzzles. Waking the Glares traz a tradição tornada hábito das histórias melancólicas contadas através da exploração na primeira pessoa.

Os puzzles são pequenas peças na constituição da narrativa e da memória do protagonista, nós, que vamos lentamente descortinando a história desenvolvida. O narrador, taciturno, vai descrevendo o que vemos, e de que forma é que o que nos rodeia está conectado à sua ruína, ao mesmo tempo que entoa pequenas dicas que nos levem a perceber o que temos de fazer e por onde temos de ir.

O problema dos dois episódios de Waking the Glares é que ainda têm pouco que os consiga distinguir de tantos outros jogos narrativos na primeira pessoa. E os puzzles, ora desinspirados, ora extremamente obtusos, não ajudam.

P.A.M.E.L.A.

É claro que uma lista de indies na primeira pessoa e que quase todos abordam a temática do horror, de uma forma ou outra não poderia ficar completa sem o encerramento da sagrada tríade da tensão: a sobrevivência.

Em P.A.M.E.L.A., como em grande parte dos survival horrors, temos de recuperar materiais e comida e tentar construir e produzir o máximo de itens possíveis para garantir a nossa existência num ambiente hostil. E se ao falarmos de outras abordagens de jogos na primeira pessoa que estão mais do que overplayed pelo mercado e não falamos dos jogos de sobrevivência então falhámos. Já tantas vezes referimos as vezes infindáveis em que o género se tornou tão aborrecido que sempre que um survival horror nos chega às mãos há um rolar de olhos pavloviano. Mas P.A.M.E.L.A. não. Conseguir o feito de interligar a ambiência narrativa de um System Shock (do qual os autores admitem serem fãs) com esta abordagem de survival game/survival horror é um feito inédito.

Se as criaturas que ameaçam a nossa sobrevivência são perigosas o suficiente na clareza do dia, é à noite que o verdadeiro perigo acontece. Numa tónica similar à de Don’t Starve, precisamos constantemente de ter uma fonte de luz enquanto nos deslocamos nas trevas, sob risco de sermos tragados pelo que se esconde na escuridão.

Ainda está em Early Access, mas P.A.M.E.L.A. promete tanto na sua fusão entre System Shock e survival game que é possível que este jogo possa vir a ser a cura para o nosso reflexo condicionado sempre que um jogo de sobrevivência na primeira pessoas nos bate à porta.