Durante todo o hype de No Man’s Sky, havia uma piada recorrente na equipa do Rubber sobre Sean Murray responder que essencialmente no seu jogo era possível fazer tudo. Dá para tirar cafés? “Claro que sim” diria Murray. Posso ir pagar o IVA trimestral*? “Até o mensal dá” garantiria Murray. “Posso ser um com o universo, desde o mais pequeno átomo até à galáxia mais distante?” “Ya…claro…o que tu quiseres”. Infelizmente No Man’s Sky, como se comprovou não dava assim para tudo, mas Everything, o novo jogo de David O’Reilly, criador de Mountain, dá. Para literalmente tudo.

No Man’s Sky prova-nos o ónus e a tónica primordial para o nosso meio, e em extensão, para a nossa coexistência contemporânea. Os limites e a avaliação de algo centram-se mais de o que é que dá para fazer ao invés do que dá para sentir ou experienciar. Avaliamos um sandbox por quão profundamente próximo do real nos permite agir. Uma proporcionalidade directa entre o número e coisas que podemos fazer e a avaliação “objectiva” de próprio objecto (passando a redundância).

Lembro-me da primeira vez que falei de Flower aos meus alunos. Quando o descrevi, falei-lhes da experiência descomprometida de desincorporármos a nossa existência e de nos observarmos enquanto algo imaterial, e quão difícil isso é conceptual e artisticamente falando.

Everything trouxe-me essa abordagem, essa experimentação única numa experiência desligada e intimista. Como é hábito, na minha preferência de partir para a experiência de todos os jogos como tabula rasa, não li nenhum PR sobre a obra de O’Reilly, nem vi o trailer oficial do jogo. Nada. Não conhecia nada sobre Everything. E essa é a forma perfeita de o podermos saborear e o podermos descobrir a cada passo.

Everything é um debate e uma formulação de uma hipótese ideológica e filosófica onde somos simultaneamente tudo e nada. A nossa existência está intimamente correlacionada com o dos outros, sendo que a definição de “outros” abrange tudo desde o objecto inanimado até à vida microscópica.

Esta pergunta tornada jogo é o cerne de Everything. “O que somos?” quando podemos ser tudo. Quando a nossa existência pode estar vinculada a uma pedra, a uma árvore ou a um ácaro, observando o mundo sob a sua perspectiva.

À medida que vamos viajando e conhecendo-nos neste périplo da descoberta filosófica, vamos desbloquando pequenos trechos de conferências do filósofo Alan Watts, de onde a sua perspectiva herdada e transmutada da cultura e religiões orientais.

Everything cimenta esta perspectiva da nossa identidade demonstrando que este mundo é realmente independente de nós, e que se estivermos parados durante algum tempo a nossa essência vai progredindo e possuindo a existência de outros objectos e animais, de micro ou macro estrutura, por vontade própria.

Everything é o culminar da experiência sandbox numa era em que a experiência sandbox é o equivalente qualitativo de uma refeição de fast food... Um universo aberto onde não temos toda a liberdade para fazer o que quisermos – ainda que multiplicarmos, dançarmos e cantarmos com qualquer objecto/animal quebre a barreira das impossibilidades – mas que temos a possibilidade de ser tudo, da mais pequena cadeia de ADN até aos braços estrelados de uma galáxia. E faz-nos pensar, respirar e ser. Porque os videojogos podem ser mais do que a vacuidade irreflectida ou o ingrato espaço intersticial entre a arte e a diversão, a zona da reflexão onde a filosofia pode e deve mover-se neste “novo” media cuja capacidade de imersão consegue ser a melhor locução entre um artista como David O’Reilly, o objecto e a filosofia, e o receptor da mensagem, que neste caso é um jogador.

*Tenho de o fazer sem falta até hoje