Lembro-me de quando era criança apressar o passo a atravessar o corredor da minha casa à noite. Havia uma sensação de uma presença escondida, prestes a agarrar-me das sombras e a engolir-me na escuridão. Ainda hoje consigo sentir aquele medo que percorria todo o corpo e que me cortava a respiração, um calafrio avassalador que percorria cada parte do meu corpo e que me deixava o coração a bater acelerado, a querer furar a prisão óssea da minha caixa toráxica.

O medo do escuro, do desconhecido, provavelmente o medo mais primordial que os humanos têm, está-nos sempre presente. Lembro-me desse medo de infância ter permanecido em mim, também ele escondido nalgum lugar não-iluminado da minha alma e de ter regressado revigorado na minha adolescência, sempre a gritar-me ao ouvido no silêncio das minhas caminhadas nocturnas de regresso de casa de amigos.

Se prestarem atenção à letra escrita pelo Steve Harris da música Fear of the Dark dos Iron Maiden conseguem perceber de forma extrapolada o que sentia, e em alguns aspectos, ainda sinto. Ainda que este medo do escuro esteja amplamente diminuído nos dias de hoje, há sempre um pequeno temor lá trás da minha mente, um local escuro, como o medo, onde a racionalidade não chega.
Little Nightmares move-se neste canto escuro dos nossos medos, a matéria-prima onde os pesadelos nascem e onde toda a razão é destruída pela emoção. Este jogo do estúdio sueco Tarsier Games é como o próprio medo: inexplicado e repleto de uma aura de isolamento, onde controlamos a misteriosa e frágil figura coberta por um sobretudo amarelo, pelas salas e corredores do que nos parece ser um navio aterrador.

Nada nos é dito para explicar a existência dos nossos captores e do aparente navio onde estamos presos. A nossa frágil figura aparentemente despida sob o sobretudo amarelo confere-nos uma margem de vulnerabilidade maior, não fosse já a diferença de escala entre nós e tudo o resto ser suficiente para demonstrar o quão frágeis e minúsculos somos neste mundo negro e opressivo.

Para quem jogou Little Big Planet (e tendo a Tarsier Games produzido e co-produzido algumas iterações da série) há uma sensação imediata de reconhecimento do controlo do personagem. Debaixo deste mundo negro e tétrico está o esqueleto simpático do Sackboy e dos seus companheiros, e isso percebe-se na física de movimento da(o?) nossa(o?) protagonista.

Onde Little Nightmares é verdadeiramente exímio é na criação de ambiente. Contrastando com os clichés musicais que pejam muitos outros jogos e filmes congéneres que falham em criar ambiências aterradoras com a estrato musical, o quase constante e constrangedor silêncio de Little Nightmares é a receita perfeita para recriar a ideia física de medo.

Pensemos na escuridão e no nosso medo primordial do escuro. É nas trevas que todos os sons são amplificados, e o que é uma pequena janela a abrir-se ligeiramente com o vento equivale ao escancarar de um pesado portão de um castelo, e o som de um vizinho a ressonar no andar de cima são os uivos fantasmagóricos de uma criatura lovecraftiana. É com este intuito que Little Nightmares desenvolveu a sua sonoplastia, através da força exponencial que pequenos ruídos têm a ecoar no vazio metálico de grande parte das salas deste jogo.

O ambiente mesclado do trabalho de Jean Pierre Jeunet com aterradoras figuras que não sendo esculpidas em plasticina, conseguem transmitir uma tangibilidade própria que só os filmes em stop-motion conseguem trazer, ajudam a recriar a irrealidade assustadora de Little Nightmares. A voracidade da nossa protagonista cuja fome incontrolável materializa-se muitas vezes em expressões canibalísticas é um desses grandes e inesperados exemplos.

As comparações com tantos outros puzzle platformers com temática sombria e/ou silenciosa são evidentes, mas acredito que a equiparação a Limbo e Inside não serve de elemento redutor, mas de mínimo múltiplo comum àquilo que foi conseguido com Little Nightmares. Um ambiente misterioso mas em todo o seu surrealismo transparece uma aura onírica, mas do mesmo material onde os pesadelos mais aterradores são cozinhados.

Little Nightmares já tinha mostrado o seu potencial de criação de ambiência nas primeiras imagens que o revelaram. O seu lançamento apenas veio comprovar o quão eficaz foi a equipa da Tarsier Games em recriar esse medo palpável quase transversal a todos os humanos, num mundo visual e auditivamente soberbo, frio e aterrador, onde todos sentimos a pressão da misteriosa figura vestida apenas com o sobretudo amarelo, e onde não é apenas dela a tensão e o terror de escapar. Essas sensações são também nossas.