Já por duas ou três vezes escrevi sobre o facto de que reconhecia a qualidade dos jogos Souls (e demais cópias) mas que nunca lhes encontrei apelo. Até Lords of the Fallen, seguindo a publicidade omnipresente que tomou conta da cidade de Colónia em 2014 durante a Gamescom desse ano. Acho que experimentei todos os jogos (até o recente Nioh) e cheguei àquela conclusão muito típico de término de namoro adolescente. “Não és tu, sou eu” diria eu a este subgénero. E ele, um pouco indiferente, assentia.

Já aqui referi diversas vezes que tenho por hábito evitar qualquer informação sobre jogos que vou jogar, sejam eles trailers, artigos ou meros press releases. Não quero saber nem ler nada, não quero ter pré-concepções em torno dos jogos, e quero sempre que possível ter uma atitude de quase tabula rasa perante eles, contribuindo por isso para o máximo de isenção possível.

Eis que entra em cena The Surge. Não sabia rigorosamente nada sobre o jogo. Zero, nicles, pevas, como diria o jargão popular. A introdução leva-me para um ambiente futurista industrializado, e sou contextualizado (dentro do possível) através de um ecrã situado na carruagem do metropolitano onde o meu protagonista (assumo eu, e mais tarde percebo que tenho razão), está sentado, com a câmara atrás de si.

Chegamos ao nosso destino. O interface avisa-me para sair para a direita, coisa que acedo facilmente. O protagonista, ainda visto de costas, mantém a mesma altura em movimento daquela que tinha quando estava (aparentemente) sentado na carruagem. Pudera, ele está de cadeira de rodas.

De cadeira de rodas.

Parei. Fiquei tão surpreendido pelo arrojo do estúdio Deck13 que ainda fiquei alguns segundos a pensar no impacto deste início de jogo. Gigantesco e corajoso impacto, diria eu, e aqueles segundos de deambulação em cadeira de rodas pelo cenário futurística abriu-me a pré-disposição para o que estava a ver.

O nosso protagonista está ali para a colocação de um exo-esqueleto operário cirurgicamente implementado, e a única pergunta que o jogo nos faz é que tipo de trabalho queremos fazer, que assumimos logo mecanicamente se queremos ser um personagem ágil ou um personagem lento mas mais forte.

Algo corre mal na cirurgia, e perante o pânico do nosso protagonista que vive tudo isto acordado e a sangue-frio, ouvimos uma voz computorizada a mandar-nos para a lixeira, literalmente, onde todos os rejeitados são enviados. Caímos na lixeira, já com o exoesqueleto posto. Seguimos umas ligeiras sugestões, pelo interface assumo que estou num RPG ocidental típico, mais especificamente num dos muitos publicados “ao estilo europeu” pela Focus Home, como The Technomancer. Levo um hit de um arremedo de humano semelhante a mim e quase 70% da minha vida foi à vida. Derroto-o, apanho o loot e sigo para o próximo. Consigo manter-me vivo tempo suficiente para ir gostando do que vejo, da aura Fallout que se espalha em todo o jogo não só pela direcção artística mas pela paleta de cores. Estou lá tempo suficiente para me embrenhar, durante largos minutos, até morrer pela primeira vez. E quando esse momento chega há algo que faz clique em mim:

Espera! Eu estou a jogar um jogo tipo Souls” – pensei eu – “E estou a gostar!” – rematei eu nas usuais conversas mentais que tenho comigo mesmo, mas que o psiquiatra diz que são normais.

Depois de ter experimentado quase todos os jogos congéneres da criação de Miyazaki (o Hidetaka, não o Hayao) acabei por encontrar aquela centelha de apelo que tanta gente à minha volta encontra em jogos do género, justamente num jogo que não repete abordagens fantasiosas medievais, mas que leva o género para outras ambiências, a das distopias pós-industrializadas do futuro, com pinceladas óbvias de Fallout.

The Surge comporta-se em quase tudo como um jogo do género. A inexistência de uma narração e enredo mais profundos que o suficiente para servirem de início de rastilho a todo o jogo, a hiper-dificuldade e a recorrência da morte, passando pela necessidade de recapturar o metal caído quando morremos, sendo este a fonte de XP para level up e simultaneamente moeda para upgrades e aquisição de novas peças.

O loot que encontramos pode ir de peças perfeitamente intactas que acoplamos ao nosso corpo ou a componentes estragados que levamos para a câmara cirúrgica para aproveitar materiais.

Ali no título faço referência a várias séries como quase explicação anedótica deste The Surge. Mas possivelmente o nome mais dissonante seja mesmo o dos Medabots. Para quem não se lembra, Medabots foi uma série de RPGs do GBA com o consequente anime, que girava em torno de combates estilo Pokémon entre robots altamente customizados, o que na prática significava que o nosso combatente era apenas um esqueleto onde íamos adicionando peças. The Surge é Medabots para adultos, violento, sangrento e altamente visceral. Uma curiosidade mecânica de The Surge é a possibilidade de mirarmos partes específicas do corpo dos adversários, não só à procura de zonas não-protegidas (e indicadas a azul) como por outra razão mais interessante.

Adicional à barra de vida e de stamina, existe uma barra de energia que nos permite efectuar um tipo de finishing move, que regra geral envolve em decepar/desmembrar a zona alvo dos nossos ataques. Existe uma probabilidade escondida de uma zona que foi bastante fustigada por pancada de ser destacada com um finisher, o que significa que vamos estar a compor o nosso personagem com restos do exoesqueleto dos nossos adversários.

Não é de estranhar que o vosso personagem ande como o meu está neste momento: com um braço-lâmina quase do tamanho do corpo, e uma perna muito maior e mais robusta do que outra, num arremedo de partes que em muito faz lembrar as composições que fazíamos com Medabots. Eu sei que a comparação é estranha, mas se fizerem o exercício de abstracção conseguem facilmente encontrar o paralelismo.

The Surge possui movimentos menos lentos que grande parte dos jogos Souls, o que associado aos drones que podemos lançar e aos sprint attacks que fazemos, e finalizando, literalmente, com os finishing moves em câmara lenta, tornam-no uma das abordagens mais dinâmicas ao género.

O ambiente industrial é interessante ainda que a passagem de ideia de labirinto caia muitas vezes em alguma repetição, quer das “criaturas” que combatemos que acabam por tornar-se algo monótonas, mas que são amplamente compensadas pelas boss fights onde o ambiente sci-fi brilha em todo o seu esplendor e serve de verdadeiro volte-face a tantas cópias de Dark Souls.

O layout dos níveis é demasiado confuso, e lembro-me de ter percorrido o nível inteiro após derrotar o primeiro boss sem perceber para onde ir e andando literalmente às voltas. Alguns dirão que é uma nova camada de dificuldade implementada pelos devs, eu chamar-lhe-ia descuido de construção, mas a cada um a sua opinião.

Com muitas customização e tipos diferentes de armas, que levam a animações e combinações de golpes diferentes que até diferem muitas vezes pela zona do corpo que estamos a atacar, The Surge foi a minha derradeira entrada neste género. Ainda não o terminei, portanto não sei se as minhas aventuras por estes jogos hiper-frustrantes se serão sol futurista de pouca duração, ou se permanecerá o entusiasmo por todos os outros jogos nocturnos de fantasia medieval e que nos prometem muitas, muitas mortes.

Fica a certeza porém que The Surge é uma grande surpresa, não só pela lufada de ar fresco que traz ao ambiente plenamente overplayed de tantos outros congéneres, mas por saber implementar uma série de elementos de sucesso de tantas outras séries, que vão da quase mimetização do setting de e ambiência de Fallout até às comprovadas verossimilhanças com algo tão pueril como Medabots.

E depois de me lembrar que o estúdio Deck13 é o mesmo que tinha desenvolvido Lords of the Fallen, esse tal sucedâneo que em tempos também experimentar, é caso para perceber a tremenda evolução em qualidade que conseguiram entre um jogo e outro em tão poucos anos. Mas também, para ser sincero, pode ser que grande parte do segredo resida no sci-fi e pouco mais do que isso.