Titular do nosso top de RPGs, digno do primeiro PopCorner, e fundador de uma série de videojogos que no ano passado nos deu um dos melhores jogos de sempre como já foi comentado mais que uma vez aqui, mas nunca teve direito a uma análise. The Witcher, o primeiro jogo da CD Projeckt RED que nos permite viver as aventuras de Geralt of Rivia é o tema deste Ia-me Esquecendo.

Há talvez 20 jogos na minha história que eu posso falar mais e melhor do que sobre The Witcher. Já o acabei três vezes totalizando no mínimo 160 horas, porque na altura fez sentido, mas não acredito que muita gente o deva fazer. Uma já é bom.

Foi lançado originalmente em 2008 foi quase automaticamente aclamado pela crítica como sendo o melhor RPG do ano e talvez da década de 00. Meteu não só Geralt of Rivia no imaginário de muitos que não o conheciam e fizeram com que desse os primeiros passos para se tornar um nome imediatamente reconhecível por fãs de videojogos, como meteu a CDProjekt RED no mapa de melhores produtoras de videojogos a nível mundial.

Um poço bem fundo

Tendo algumas das características clássicas de um RPG de acção, não deixa de ter alguns aspectos que o diferenciam dos seus pares e mesmo dos outros jogos da série. O jogo é fortemente focado na narrativa, quase tanto como na acção, mas consegue que a história e acima de tudo as decisões do jogador (que podem ir da escolha entre dois caminhos ou da hora a chegar a um local, ou que uma simples frase num diálogo) guiem o nosso caminho com consequências bem sérias. É quase um exagero do efeito borboleta onde pisar uma agora vai criar um furacão na nossa vida uns minutos depois. Essa é a razão de o ter jogado 3 vezes, porque dentro de todas as pequenas opções e as suas várias ramificações há 3 caminhos principais a escolher, um debate moral dentro do nosso personagem/avatar que acaba por se tornar nosso. Escolhemos uma das facções numa guerra civil ou respeitamos o código que nos foi ensinado e mantemos a neutralidade num equilíbrio quase impossível de alcançar? Quem nunca jogou The Witcher mas começou pelos muito mais famosos segundo ou terceiro jogos da série sabe bem o peso que as decisões têm aqui e como são complicadas de tomar.

Estas decisões não teriam tanta importância se não fossem suportadas por um mundo extremamente rico em ambiente e acima de tudo em personagens de maior ou menor relevância mas com um grande nível de profundidade e maturidade. Maturidade aqui não é acerca de conteúdo mais adulto pelo qual o jogo se tornou famoso, mas sim de personagens com uma mentalidade adulta, muitas vezes mostrando-se capazes de escolher o menor de dois males para conseguirem atingir os seus objectivos, maturidade numa perspectiva em que nada é preto ou branco mas tudo tem uma tonalidade de cinzento. São personagens como Zoltan, Dandelion, Triss e Shani que auxiliam Geralt e lhe dão um apoio moral e uma história a descobrir apesar da sua recente (e conveniente) amnésia, mas também personagens como The Professor, Azar Javed, Siegfried, Yaevinn ou até Thaler e Alvin que dão uma profundidade ainda maior ao jogo pois ele vive tanto dos personagens de apoio como do principal.

Os diálogos, as questões morais e não só, eram e ainda são muito acima do nível comum dos jogos, deviam ser a regra padrão mas num altura em que tudo é cada é mais estupidificado tornam-se uma excepção a louvar. Infelizmente a simplificação superficial das coisas é encontrada em tudo hoje em dia e não só nos jogos. Olhem para qualquer página dos New Teen Titans ilustrada por George Pérez durante os anos 80 que apesar de ser focado para um público mais juvenil tinha mais conteúdo escrito e a profundidade do que por exemplo comparado com algo feito pós-2000 ou até os próprios Teen Titans da actualidade. Ao longo dos anos deixámos de ter conteúdo como regra geral e passámos a (des)focar a visão para a beleza superficial. The Witcher respeita o que era regra num passado não tão distante, os personagens são construídos com sentido, há uma história individual para cada um deles e uma história comum com o protagonista, há interesses de vários níveis e há consequências sérias para todos os envolvidos.

Enquanto as tragédias clássicas tinham 5 actos, The Witcher tem 7, incluindo o prólogo e o epílogo, cada um deles com uma localização e objectivo principais. E em vez da estrutura de subida até ao clímax no final do acto 3 e consequente declínio do protagonista, cada capítulo tem o seu próprio ponto alto no final que vão gradualmente ficando mais difíceis e importantes até ao conflito final. Esta estrutura, muito mais própria do romance escrito é melhor aplicada ao videojogo que a teatral, mas mesmo assim há algo de herói trágico em Geralt, sendo ele um herói que acaba por reconhecer a sua fragilidade e perceber que nunca terá um sucesso puro, mas pequenas vitórias que são quase tão vazias como fugazes.

Cada Geralt é um Geralt

Há uma regra comum em alguns RPG, e particularmente nos JRPG que é a do personagem sofrer de amnésia para que o jogador possa preencher o lugar dele com os seus próprios pensamentos, ideias e muitas vezes aspecto físico. Este aspecto também “obriga” o jogador a investigar a situação mais a fundo, faz com que ele questione NPCs e procure descobrir mais o mundo, onde somos desconhecidos.

The Witcher consegue um equilíbrio invulgar ao utilizar este lugar comum de um personagem que tem uma tela branca na sua memória, mas não é uma tela branca no seu mundo. Geralt tem anos de história quando começamos o jogo, tem centenas de interações passadas com vários personagens e em muitos casos a sua reputação, menos que respeitável pelos olhos da população, precede-o. Contudo a maneira como os diálogos e história são desenvolvidos permite que o nosso personagem vá aprendendo o que e quem é, o que fez, e para onde deve ir. E nós crescemos e evoluímos com ele.

A evolução clássica de um RPG, ganhando pontos de experiência e aplicando-os a atributos, habilidades, magias, etc. é mantida aqui, mas a quantidade de hipóteses de evolução é tão diversificada que cada jogador pode criar o seu próprio Geralt. Não é só nas opções do enredo que é permitido ao jogador guiar o personagem à sua maneira mas também nas habilidades, estilos de luta e outras capacidades, criando um personagem novo e diferente de cada vez. E mais uma vez as escolhas podem ter consequências bem sérias, e habitualmente têm. Evoluir uma magia sobre outra, um estilo de luta de espada em detrimento de outro terá as suas repercussões mais cedo ou mais tarde. Como e o que evoluir durante o jogo é uma viagem de aprendizagem. Fazem-se erros, tem-se sorte às vezes mas acima de tudo, com calma e cálculo acabamos por escolher o que é melhor para nós. Sendo o factor mais importante que apesar de ser um personagem já cheio de conteúdo acaba por permitir que o façamos nosso.

Livros, as melhores armas do mundo

Geralt sofre de amnésia, sabe muita coisa do que e quem é, mas no geral tem que voltar a aprender. E tal como as suas habilidades é com tempo que ele vai ganhando o necessário para lutar contra as adversidades que lhe são colocadas no caminho, e tal como o Doctor diria, a sua maior arma são os livros.

Apanhar livros num RPG é algo normal, mas é raro que tenham a importância que têm em The Witcher. É normal que um jogador novo veja os livros nas prateleiras, baús e mesas deste mundo e até pegue neles e coloque no inventário, mas seja por falta de espaço ou para tentar ganhar algum dinheiro para aplicar naqueles objectos aparentemente mais úteis, os vendam ou descartem sem olhar para eles com atenção. Esse acto comum é um erro, pois é nos livros que Geralt vai buscar o seu conhecimento, é nos livros que se aprende onde encontrar criaturas, como as derrotar e o que retirar delas para poções e afins. É nos livros que aprendemos sobre plantas e minerais, como os identificar e onde utilizar. É nos livros que aprendemos história e outros aspectos do nosso ambiente.

Quem diz livros, diz pergaminhos, papéis ou até sinais na estrada onde estão afixadas missões. Tudo o que é legível é importante e valioso. O valor nos nossos livros não diminui no alfarrabista depois de os folhearmos, um livro intocado é tão valioso como um que passou pelos nossos olhos, a raridade é que influencia o seu preço. Agora, o valor que tiramos deles? Isso é incalculável!

Antes da Gwent Stacy

Um bom RPG costuma ter bons jogos secundários, mini-jogos que nos permitem desanuviar da acção principal e também ganhar algum dinheiro de forma mais ou menos licita. Fossem os jogos de arcada da Sega em Shenmue, ou Mini-golf em GTA V, Sabacc em Knights of the Old Republic, ou  até Gwent em The Wild Hunt (que acabou por se tornar um jogo mesmo), estes mini-jogos dão um certo interesse adicional à acção, The Witcher tem três mini-jogos que estão perfeitamente incorporados no mundo de Geralt sendo o primeiro as lutas de bar.

Há todo um circuito clandestino de lutas em Vizima, uma espécie de Fight Club em que a regra um e dois são ignoradas mas onde é necessário subir nos escalões para chegar aos melhores, o sistema é básico, sempre que encontramos um local novo vamos apostando e lutando com os vários competidores até vencer o campeão e passar para outro local. O sistema de luta é o mesmo que o utilizado no jogo, através de sequências de golpes com um timing preciso e um modo mais rápido ou mais forte adequado ao nosso adversário.

A evolução no ranking e “campeonatos” de luta é semelhante ao meu jogo favorito dentro do jogo. Poker de dados. As horas que passei a jogar Poker de dados amealhando moedas de ouro chegou ao extremo de a certa altura ir só mesmo jogar dados sem fazer mais nada ou avançar no enredo.

O terceiro jogo é o mais difícil e o mais interessante as cartas de conquistas amorosas de Geralt. Cada moçoila que o Lobo Branco seduz dá direito a uma carta, um quadro erótico em que podemos ver no seu esplendor da natureza e beleza da mais simples camponesa à princesa mais autoritária passando por elfos-guerreiras, prostitutas e até vampiras. Encontrar estas possíveis senhoras disponíveis e conseguir através de ações e diálogos cair no seu abraço caloroso é muito mais complicado e recompensador que parece ser. Outra das razões que me levou a jogar mais que uma vez foi porque certas opções levam-nos a caminhos que nos impedem de cair nos lençóis de algumas destas senhoras, e não podia deixar isso acontecer.

Antes de The Wild Hunt, The Witcher foi uma lição em construção de jogo, de universo e respeito pela fonte na maneira como a história, os personagens, a jogabilidade, a imagem e banda sonora e todos os outros aspectos foram reunidos, a CD Projekt RED começou aqui a sua galopada triunfante que a levou ao seu estatuto actual. Com esta obra-prima dos videojogos mostrou a estúdios e criadores que é possível fazer algo bem, sem pressas e inovando fórmulas repetitivas. Acima de tudo mostraram com constantes ações que falam bem mais alto que palavras um respeito absoluto pelo jogador, não como uma fonte de dinheiro mas como o receptor de uma obra a ser apreciada como deve ser. Joguem se têm, se não têm comprem quando puderem, peçam ao Pai Natal ou ao Coelhinho da Pascoa, mas joguem. Vale totalmente a pena.