Podia começar, ou acabar este texto com um qualquer comentário cómico acerca de bufos, chibos e polícias secretas mas não o vou fazer porque acho que muitas vezes as pessoas falam sem saber o que é a realidade, mesmo aqui em Portugal onde tivemos casos concretos de polícia política e atrocidades cometidas por muitos dos seus membros, a versão completa que conhecemos é a do lado que venceu a batalha. Na melhor das hipóteses apenas 1% dos leitores deste artigo viveram como adultos durante os anos da ditadura, ou até como jovens. Por isso, felizmente, a grande maioria dos leitores desconhecem a realidade do que foi viver nesse regime e não têm consciência de que os assistentes do governo muitas vezes faziam-no sob o jugo do medo, de ameaça e para salvaguardar a sua sobrevivência e a dos seus. Aqueles que hoje vemos como monstros papões eram pessoas com família e que podíamos ser nós dada a mesma situação.

Não quero soar um pragmático absoluto que desculpa quem “estava só a cumprir ordens” porque deve haver sempre mais que uma solução para qualquer problema, mas a minha natureza obriga-me a ser advogado do diabo em qualquer cenário e não posso culpabilizar totalmente quem não olha a meios para sobreviver ou garantir a sobrevivência de outros que lhe são chegados. Não vou culpabilizar quem não olha a meios para atingir um fim, mesmo que à custa de outros. Posso não concordar, mas entendo.

O cenário que Beholder nos coloca à frente é precisamente esse, o de vigilante de um governo totalitário e opressivo, em que caminhamos a ténue linha moral de apontar o dedo a quem não cumpre as leis e não é um cidadão exemplar debaixo do olhar vigilante do grande líder. A premissa geral deste título é muito interessante e está cheia de bons pormenores enquanto sofre de algumas falhas, tal como o personagem do jogo. Ao controlar Carl Shteyn somos colocados como gestor de um edifício de habitação com a tarefa adicional de vigiar os seus inquilinos. Ao mudar para essa nova morada e função, somos confrontados com o nosso antecessor a ser retirado das suas funções de forma consideravelmente violenta que coloca imediatamente o tom de seriedade das repercussões ao falhar na nossa missão. Podemos agora também jogar essa prequela no DLC Blissfull Sleep para saber como chegamos a esse ponto na história de uma outra perspectiva, tipo nos antigos filmes de jeito do Quentin Tarantino em que tínhamos a mesma história contada de vários pontos de vista cruzando-se num ponto fixo no tempo.

Tudo cai no campo da perspectiva, quem nós vemos como sendo mau, e até que ponto nós próprios queremos ser coniventes com a lei ou quem a quebra. É um equilíbrio difícil de manter e acima de tudo difícil de vencer. Toda a premissa do jogo é que nós, como Carl, temos livre arbítrio. Podemos e devemos fazer a nossa função de vigilantes mas também temos que cumprir a função de gestor do prédio, garantindo que os inquilinos sejam mantidos de modo a ter alguma rentabilidade. A questão torna-se mais complicada quando nos apercebemos que não sendo o cidadão exemplar que o governo espera de nós, ser uma espécie de máquina de vigilância e denúncia imoral é extremamente fácil perder o jogo.

Beholder não nos ajuda muito no que eu inicialmente julgava ser uma ilusão de opção. Para ganhar e mesmo aí não é fácil, é necessário obedecer às ordens do Ministério e fazer tudo o que nos mandam, mas o jogo tem duas falhas aqui que me custam bastante aceitar porque são totalmente contraprodutivas. Sendo a primeira o limite de tempo nas missões. Na missão tutorial somos encarregados de encontrar provas que incriminem um inquilino suspeito, temos um limite de tempo para o fazer, que a meu ver é ridículo. Não é o limite de tempo de só conseguir entrar em casa dele para vasculhar os seus objectos e montar câmaras de vídeo escondidas enquanto ele está fora, é literalmente um contador decrescente para o fazer. Além disso uma das poucas maneiras de encontrar provas é roubando-as aos inquilinos, que depois falam uns com os outros e acabam por reportar roubos a mais à polícia, nós tornamo-nos suspeitos, portanto podemos literalmente ser presos por ter o metafórico cão e não o ter.

De início não gostei deste aspecto, e continuo a não gostar do temporizador, acho que devia ser totalmente retirado do jogo e o sucesso ou falhanço das missões fosse ditado mais organicamente mas não podemos ter tudo. Quanto aos roubos e outros pormenores que nos podem causar problemas acabei por me aperceber que é uma óptima simulação do que seria uma situação real semelhante a esta, em que um governo teria que permitir que os seus ajudantes dobrassem as leis mas não as quebrassem para não cair numa anarquia parcial. Existem sempre escolhas morais e outras que podem ser geridas cuidadosamente sabendo que as consequências podem ser muito graves.

Esteticamente bem construído com óptima utilização de luz e sombras num ambiente cinzento mas acima de tudo com o uso de personagens sem cara ou detalhes específicos mas consideravelmente expressivos. A escolha deste grafismo não foi, no meu ponto de vista, acidental. A desumanização do nosso personagem assim como de tudo o que o envolve é necessária para tentar facilitar as nossas escolhas para o lado do governo, a maneira como teríamos que “apagar” a cara das pessoas que vigiamos para que a nossa consciência conseguisse deixar-nos dormir está muito bem representada aqui.

Se a gestão do edifício fosse um pouco mais desenvolvida o jogo só tinha a ganhar pois mesmo com uma curva de aprendizagem acentuada e os aspectos positivos suplantam de longe os negativos. Pela quantia de €9.99 Beholder é uma óptima compra para fãs de ambientes Orwellianos, ou simplesmente que acreditem na possibilidade de um futuro inevitavelmente distópico, o DLC Blissful Sleep por €3.99 é também uma óptima adição ao enredo apesar de não ser indispensável.