Enquanto andava meio mundo da imprensa a submergir em tinta horas infindáveis do seu tempo com a antevisão do excelente Splatoon 2, eu admito que aquilo que me mantinha relaxadamente (e durante cerca de 30 horas já) agarrado a uma consola foi mesmo Miitopia.

O meu apelo para com esta linguagem não é novidade, e basta regredirmos quase exactamente 3 anos para nos lembrarmos da minha análise a Tomodachi Life e de tantas dezenas de horas dedicados a esse delicioso e surrealista jogo da Nintendo.

Miitopia prometia algo semelhante. Entre o cruzamento em larga escala de Mii Quest (mas convenhamos, em bom) com a pseudo-heterodiegése de Tomodachi Life, permitindo-nos adaptar o nosso círculo de avatares de amigos à narração do jogo.

Miitopia não é para todos, arrisco-me até a afirmar que grande parte dos críticos não deva conseguir aproveitar na sua simplicidade e nos prazeres tão elementares que nos dá, dentro da sua monotonia auto-reconhecida e automatismos quase excessivos, mas salutares, como veremos mais à frente.

Os RPGs, e em especial os JRPGs têm por hábito permitir-nos viver uma história regularmente redundante, um lugar-comum cheio de estereótipos onde a nossa força terá de ser aplicada para suplantar o Mal, e onde muitas vezes a nossa capacidade de interligação com o elenco esbarra na sua bidimensionalidade criativa.

A primeira conquista que Miitopia tem ao quebrar com as convenções dos demais RPGs é ter uma assumida consciência dos seus lugares comuns, e tornar-se amplamente auto-referencial, colocando-nos num ambiente mais descontraído onde os clichés são assumidos, e de certa forma, reverenciados.

O segundo é a motivação-aptidão do Dark Lord, o antagonista, para cometer os seus actos de maldade. Visto que uma das grandes características customizáveis dos Miis são, obviamente, as suas caras, o Dark Lord tem o poder de as roubar e de as colar no corpo (às vezes nas nádegas) de monstros que encontraremos em random encounters e em bosses.

A terceira maravilha, e mais simples e óbvia de Miitopia, é a personalização do elenco. À semelhança de Tomodachi Life, o sucesso do nosso investimento emocional no jogo passa pelo facto de que os nossos elementos de party (e até NPCs) podem ser importados dos nossos Miis, de Tomodachi Life, ou até criados de raiz, de forma a representarem o nosso círculo familiar e de amigos. Por exemplo, e por ironia, o Dark Lord do meu jogo é o Jorge Vieira, que como é sabido para além de ser uma figura conhecida da Nintendo Portugal é das pessoas mais afáveis e amistosas que conheço. Tê-lo como o antagonista Dark Lord Jorge tornou as interacções entre os nossos personagens risíveis e um dos contribuidores para o grande espírito de descontracção de todo o jogo.

Transformar a história do nosso jogo na nossa história, onde os personagens podem ser criados à imagem de quem nos rodeia acaba por criar uma ligação única com todo o enredo que dificilmente outros jogos semelhantes nem conseguem sequer imaginar como fazê-lo.

O quarto, e possivelmente aquele que será mais criticado pelos meus congéneres, será o automatismo e monotonia de um jogo que praticamente se joga sozinho. No entanto, e por incrível que pareça, esta aura automática sino-inspirada pelo mercado asiático tornou-se um dos elementos que me criou maior proximidade.

Por muito que escavemos e lutemos por uma complexidade intelectual nos jogos, a realidade é que com a pressão quotidiana e crescente à medida que envelhecemos, vamos precisando de escapes mais simples de diversão no seu estado elementar, e Miitopia consegue-o de forma exímia. Para além de só conseguirmos dar ordens ao nosso protagonista e os restantes membros da party serem controlados pela IA, a possibilidade de colocar a batalha em auto-battle tornou mais suportável as diversas quests e grind que envolvem invariavelmente derrotar um boss para devolver a face a determinados personagens, permitindo-nos assim avançar na história.

Por ironia, e dentro da extrema simplicidade mecânica de Miitopia, existem uma série de boas ideias em termos de RPG (e de JRPG) que não sendo novidade ajudam a criar uma experiência verdadeiramente única. A primeira, e rotineira (nos JRPGs) ligação afectiva dos personagens, e que permite ataques em conjunto e entre-ajuda em combate tem também o seu revés. Por vezes os personagens zangam-se uns com os outros e isso afecta também o decorrer do combate, colocando-se à frente dos seus objectos de zanga para que estes não ataquem ou atacando em simultâneo apenas por despeito.

O relacionamento dos personagens pode ser melhorado ao final de cada nível ao dormirem no mesmo quarto na estalagem, ao terem momentos de interacção positiva ou entre-ajuda em combate ou fora dele. É também desta forma que as zangas vão sendo diminuídas até se dissiparem.

Sem os clássicos vendedores, é na estalagem que tudo se passa. De forma quase aleatória cada personagem pode pedir-nos dinheiro (a nós, jogadores e entidades heterodiegéticas que supervisionam o mundo) para irem comprar uma arma ou armadura novas. Esta é uma das poucas formas de fazerem upgrade ao seu equipamento, para além, dos usuais baús no meio dos níveis e da roleta que por vezes oferece itens.

É também na estalagem que podemos alimentar os personagens com a comida que apanhamos como loot dos inimigos. Cada comida dá bónus nos stats dos personagens, e este bónus é aumentado ou reduzido quanto mais ou menos o personagem gosta de determinada comida.

As classes são curiosas e absurdas como seria de esperar. A classe do tanque é literalmente um tanque, um disfarce onde o capacete é o canhão. Todos estes elementos de surrealismo herdados de Tomodachi Life tomam ainda maior forma nos diálogos espontâneos que os personagens vão tendo enquanto percorrem os níveis, e até nas pseudo cut-scenes dentro e fora da estalagem. Há muita inspiração do excelente Bravely Default em todo o jogo, e as classes e a sua forma de funcionamento são o elemento mais óbvio.

A personalidade de cada personagem tem também reflexo em combate. Um personagem determinado pode (aleatoriamente) esperar pelo final do turno de todos para agir para dar mais dano, e um teimoso pode decidir atacar uma segunda vez apenas por teimosia, enquanto que outro cool consiga desviar-se dos ataques inimigos apenas para mostrar o quão fixe é. Esta adição das personalidade enquanto elemento de jogo é uma excelente ideia e algo que gostaria de ver aplicado noutros JRPGs.

Miitopia é simples, e reconhece-se nessa simplicidade. É um jogo que se joga sozinho, e que até podemos manter a caneta da 3DS premida para acelerar o tempo dentro e fora de combate. Mas desta forma permite não só que o exaurível grind seja feito sem esforço e também que nos permita relaxar, sorrindo efectivamente para o quão descontraído o jogo é, e permitindo-nos escolher o nível de interacção que temos com ele, e que pode mudar bastante durante uma sessão de jogo.

Miitopia não é para todos, como disse, mas tem sido um dos momentos mais relaxantes de jogabilidade que tenho tido no último mês. Divertido de forma descomprometida, e que nos permite levar-nos e aos nossos para dentro de um mundo absurdo, com um combate ainda mais absurdo e que acaba por elogiar enquanto parodia com os clichés do género.

Pela sua simplicidade é um jogo para os mais novos, mas também para os mais velhos como eu que por vezes só querem sentar-se no sofá e relaxar depois de um dia de trabalho durante trinta minutos sem ter de sentir a tensão emocional que grande parte dos jogos exigem.

Não se deixem enganar, Miitopia é um grande jogo, com brilhantes ideias e momentos mecânicos, e com o humor que o absurdo dos Miis e de Tomodachi Life conseguem trazer. Indubitavelmente um jogo obrigatório para a 3DS.