O estúdio Accidental Queens leva-nos de volta a uma das obras narrativas mais arriscadas dos últimos tempos. No primeiro jogo pisávamos os limites conceptuais e éticos entre sermos um espectador da vida de alguém e interferir nela. A Normal Lost Phone colocava-nos na situação potencialmente realista de encontrarmos um telemóvel perdido e de, mediante a nossa consciência, explorarmos a vida de alguém sem o seu consentimento.

O nosso smartphone é nos dias de hoje mais do que uma janela para a nossa vida, é uma porta escancarada à mercê de alguém que lhe ganhe acesso. Foi a pensar nisto que o primeiro jogo nos colocou no encalço de Sam, um jovem que acabou de fazer anos e cujo “desaparecimento” cria-nos curiosidade para percorrermos a sua lista de SMS, e-mails e redes sociais a tentar encontrar as respostas para a nossa curiosidade e para o seu paradeiro. O facto de que nos podíamos fazer passar por Sam e intervir na sua vida e nos que lhe eram próximos foi alvo de críticas de alguns jogadores, o que acabou por deixar as próprias devs num dilema ético.

Neste segundo jogo, Another Lost Phone: Laura’s Story o caso muda de figura. A forma brilhante como a história de Laura nos é contada à medida que solucionamos pequenos puzzles (quase todos num género de perícia suave) para encontrar palavras-passe que nos dêem acesso às diversas apps do seu telefone.

A forma como nos envolvemos neste curto jogo, desta vez meramente espectadores (ao contrário da nossa interferência no primeiro jogo), e onde as poucas acções que podemos tomar são-nos quase dirigidas através de instruções deixadas por Laura no seu telefone, demonstram o quanto os videojogos são o meio privilegiado para contar histórias de forma diferente e inovadora, coadjuvando a nossa interacção com a mestria (ou a falta dela) dos criadores de contarem um conto, ainda que curto como é o caso deste Laura’s Story, de uma forma que nenhum outro meio conseguiria fazer.

Another Lost Phone: Laura’s Story é um jogo baratíssimo para a qualidade narrativa que possui, e ainda que bastante curto (acabei por conseguir desvendar toda a história em menos de 30 minutos), conseguiu ter um impacto tremendo. Impacto esse que far-me-á chegar a um ponto em que nunca cheguei: a necessidade de incorrer a spoilers e a falar de toda a história e a forma exímia como o assunto subjacente a este Laura’s Story é contado.

Fica portanto o aviso que após as duas imagens que separarão esta mancha de texto, o parágrafo que continuará o artigo tem revelações do enredo de Laura’s Story e que deverá ser lido, preferencialmente, após terem jogado este maravilhoso jogo.

Another Lost Phone: Laura’s Story é o recontar de uma história com o qual já me tinha cruzado. Depois de o ter terminado passei duas horas pela internet para encontrar a história original, mas sem me conseguir lembrar se era um artigo em português ou em inglês, ou sequer se era um vídeo, a minha busca acabou por se tornar a procura de uma agulha num palheiro.

A forma como essa história me marcou centrou-se na forma como nos vai submergindo numa linha temporal em que percorremos todos os estados de alguém que é vítima de violência doméstica. No primeiro quadro é-nos revelado o quanto o apaixonado é o homem mais carinhoso do mundo, com todas as suas juras de amor e todos os seus momentos quase irreais de romance.

O relacionamento evolui, e aquilo que é uma grande cumplicidade transforma-se numa relação de hiper-protecção e de subserviência. Enquanto a preocupação dele aumenta exponencialmente, a sociabilização dela diminui, até ao ponto que existe uma anulação da identidade dela pela imagem enclausurada construída por ele.

A leitura que fazemos desta evolução é óbvia, quando vista de fora, mas está escrita de forma a que nos sintamos em dúvida perante a realidade desta relação. No último terço do conto/artigo/vídeo (continuo sem saber qual o medium original) há uma série de interpelações de amigos e amigas que fazem a vítima ter consciência que o é, e perceber que onde vê super-protecção seguido de ciclos de agressividade e violência alternados com carinho extremo, está na realidade a viver um caso padrão de violência doméstica.

Como disse, Another Lost Phone: Laura’s Story é a reinterpretação deste artigo, mas a forma como o formato videojogo nos leva ao engano e a estar distante do que realmente se passa com Laura é surpreendente. Onde no início vemos a preocupação e o carinho de Ben, e o receio de que o desaparecimento de Laura tenha alguma ligação com o descarrilamento de um comboio nas imediações, vai sendo tornado ainda mais real com o contacto que encontramos entre Laura e uma ex-namorada de Ben. Another Lost Phone: Laura’s Story é eficaz em fazer-nos acreditar no quão saudável é a relação do casal.

É apenas com o desbloquear dos segredos mais escondidos do smartphone de Laura que a verdade vem ao de cima, e percebemos que o seu desaparecimento foi voluntário, após chegar ao ponto de não-retorno em relação à violência do qual foi vítima.

A história é simples, mas é no seu ritmo que encaixa toda a sua beleza e excelente execução. A forma como nos deixamos submergir na vida de Laura e reconstruímos uma leitura da sua vida através do que desenterramos do seu telemóvel é verdadeiramente sublime, e consegue estar a par da envolvência do primeiro jogo.

Mas há algo mecânica e narrativamente atingido com este segundo jogo que me parece mais maduro e que demonstra as quase infinitas possibilidades de storytelling  que os videojogos permitem. Ao sermos meros voyeurs da devassa da vida da protagonista ausente (lembro-me por exemplo do conceito cliché do vídeo Babalon A.D. dos Cradle of Filth, onde a pessoa que descobre uma câmara abandonada acaba por perceber que ela é parte do filme que está a ver) acabamos por ter um distanciamento diferente, e é o próprio culminar da história que nos permite colocar um pé dentro dos acontecimentos, e com isso fechar o ciclo.

Another Lost Phone: Laura’s Story é uma das melhores histórias curtas que os videojogos têm para oferecer, tendo ao mesmo tempo tanto a ensinar em termos de storytelling ao mercado mainstream, mostrando que a simplicidade do meio não empalidece quando estamos perante uma excelente história para ser contada.