O meu caminho cruzou-se mais vezes com o da depressão e do suicídio do que algum dia poderia esperar. Demasiados casos desde tenra idade em que pessoas próximas acabaram por ceder aos sussurros negros da depressão que os incitava a desistir de tudo. Demasiados acreditaram que procurar o fim era a solução inequívoca para todos os seus problemas.

Demasidos. Falo em demasiados como se apenas um não fosse já por si só, demasiado. Foram vários, pelo menos meia dezena de pessoas com quem estive mais ou menos ligado durante estes mais de trinta anos de idade e que decidiram abraçar de forma derradeira a tristeza.

O último caso foi há pouco mais de uma semana. Por ironia das circunstâncias, duas horas depois acabaria por conhecer um jogo nas redes sociais através do Isaque que aborda narrativa e emocionalmente o suplício e o isolamento de alguém que vive uma depressão profunda. Please Knock on my Door é esse jogo.

O tema não poderia estar mais vivo, e referi-lo a Michael Levall quando o contactei para lhe pedir uma cópia de análise serviu de quase ligação directa com o tema, ainda que o autor, sensatamente, me tenha aconselhado a deixar passar um período de luto perante a dureza emocional do seu jogo antes sequer de o começar.

Há tantas subtilezas em Please Knock on my Door para recriar o peso da depressão em qualquer um de nós que permite que o nosso impacto nesta curta história seja avassalador e que demonstra a genialidade e a sensibilidade artística do seu autor.

A depressão não tem estereótipos, não escolhe perfis específicos nem segue padrões de comportamento ou de modelos sócio-culturais. A escolha de Levall de tornar o protagonista uma silhueta negra cujos únicos traços de expressividade são os olhos, com um brilho triste que dizem mais no seu enquadramento do que uma modelação CGI hiper-realista. São aqueles olhos, tristes, como dois pontos de iluminação taciturna que acompanham uma figura que se arrasta pelo silêncio da casa onde passamos grande parte das secções interactivas do jogo.

É a voz que nos surge desde o início, um narrador heterodiegético que é simultaneamente uma voz interior do protagonista, com um tom sereno, quase positivo, mas raramente reconfortante. É a voz segura mas vazia que relembra que tudo vai ficar bem e que devemos manter o ritmo do nosso quotidiano. Comer, lavar os pratos, distrairmo-nos com a TV ou o computador, tomar banho, dormir, num ritmo circular onde a rotina é a única estrutura que sustenta a estrutura do prédio em ruínas que é a alma de quem vive em depressão profunda. É a voz que mostra as suas verdadeiras intenções quando escolhemos fazer algo que não tinha sugerido por si.

Esta voz é a nossa única companhia. Fazer o esforço de manter um ritmo em casa significa que ora passaremos muito tempo a olhar pela janela da cozinha para a árvore solitária, tão só quanto nós mesmos, ou a dormir. Falhar estes ritmos implicam consequências sociais e um enfraquecimento das nossas defesas emocionais, permitindo que a depressão se apodere ainda mais de nós.

O despertador mostra-nos as horas a passar no seu ecrã digital, e quando o alarme toca a obrigar-nos a sair da cama e arrastarmo-nos física e psicologicamente para o emprego é quando o peso da depressão mais se sente.

Estar em casa é o resumo do isolamento, da autocomiseração enquanto companheira de casa não-desejada, e onde vemos apenas as horas a passarem. Mas lá fora há um mundo, cheio de pessoas e de confrontos, de diálogos e de interacções, todas elas que a nossa depressão quer evitar a todo o custo.

Manter o nosso ritmo quotidiano significa também chegar a horas ao trabalho e tentar segurá-lo como se fosse a nossa única tábua de salvação. E talvez seja. Sempre que saímos de casa somos confrontados com alguma situação onde nos limitamos a escolher qual a nossa reacção, facto que terá implicações no nosso desempenho e nas relações com os nossos colegas.

Toda a sequência no trabalho é apenas um instante que passa. Temos a nossa secretária à frente e tudo o que podemos fazer é ler os diversos post-its que são colados na nossa mesa e que reflectem as consequências das nossas escolhas, mas também as preocupações crescentes das pessoas à nossa volta. Podemos ignorá-las e clicar para voltar para casa, esse refúgio que ocupa grande parte do tempo de jogo, enquanto as horas de trabalho são apenas um ápice sem sentido, um background na dormência de todo o sofrimento e tristeza.

À medida que a nossa vida vai ruindo em paralelo com o nosso corpo e mente também eles tornados ruínas pela depressão, e a voz muda. Não só em tom, como em conteúdo, como em cor. As legendas que outrora eram brancas são agora vermelhas. A voz falsamente reconfortante dá lugar a um discurso de desistência. As acções passam do quotidiano de “comer” para “nausear”, “dormir” para “expirar profundamente”. As nossas escolhas condicionam o agravamento (ou não) da depressão e do isolamento, e que são sentidas na nossa incapacidade em vermos acções negras por toda a casa. Até que, como aconteceu no meu jogo por consequência das minhas escolhas, apenas um caminho fica disponível. Já não podemos ir até à cozinha nem à sala, nem sair de casa. Apenas a casa-de-banho nos espera, como o final da linha que terminará de forma triste ao pressionar da opção de overdose. Entrar na banheira, e esperar lentamente que o desespero, o sofrimento, a dor, a depressão e todo o negrume que o personagem carrega sobre si acabe por desaparecer. E que ele desapareça por consequência.

Please Knock on my Door mostra-nos, de forma contundente, como pode ser traçado o trilho da tristeza até ao suicídio. E consegue-o mostrando os pequenos momentos quer condicionam e contribuem para o agravamento da depressão, e da forma como ela serve como afastamento de quem se preocupa e de quem se gosta. Uma das experiências mais pesadas que os videojogos já me trouxeram, elevada por toda a simplicidade técnica e as subtilezas conceptuais que constroem este percurso.

Este podia ser qualquer um de nós” relembra Levall, e tem toda a razão, ao mesmo tempo que nos mostra que tantas vezes os sinais são tão explícitos que acabam por ser ignorados por todos. Até que percebê-lo é já tarde demais.