Não é a primeira vez que falamos de livros por aqui. Com o filme a sair, não é também a primeira vez que aqui falamos de cinema. Ready Player One, de Ernest Cline, faz lembrar o Neuromancer, de William Gibson. Não tanto pela vertente cyberpunk paciente e meticulosamente construída por Gibson, mas pela eloquência com que nos pinta um quadro de um futuro provável e cada vez menos distante. A presciência de Gibson parece encontrar um par no nerdie fanboy que assina como Cline. Neuromancer foi publicado pela primeira vez em 1984 (numa coincidência que Orwell certamente apreciaria) e lança para o ar conceitos que, hoje em dia, são lugares comuns, não só no universo tecnológico, como no mundo que nos rodeia, dia a dia.

Não deixa de ser curioso que também Neuromancer tenha visto um filme ser anunciado este ano, com o velho clássico de ficção científica a ficar a cargo do realizador de Deadpool para levar a cabo o salto para o grande ecrã.

Ready Player One é uma espécie de sonho lúcido acerca de como poderá ser o futuro, tendo como ponto de partida a tecnologia e o mundo dos videojogos. E, se Black Mirror o faz de um ponto de vista soturno e sombrio, extrapolando complicações e ramificações adversas quando sobrepostas à natureza humana, Ready Player One fá-lo de uma forma mais amigável.

Estamos no futuro e o mundo gira em torno do Oasis. O Oasis é omnipresente. É a utopia num mundo distópico. O Oasis é um local virtual onde o jogo se mistura com a vida real. Um Second Life ubíquo, com a força de mil e um Facebooks, Googles e Microsofts juntos. É incontornável, omnipresente. É como se as coisas só existissem se estiverem no Oasis, o mundo virtual acessível através de um equipamento de realidade virtual complementado com dispositivos hápticos onde a fronteira que separa o virtual do real é um fino véu de papel vegetal ou uma frágil teia de aranha. Um mundo onde as escolas são virtuais e um professor ministra as suas aulas numa sala virtual recheada de avatares de estudantes que, em suas casas, navegam pelo Oasis e saltam da sala de aula para um recreio com sabor a World of Warcraft, oscilando entre o grinding de mobs para ganhar dinheiro e experiência e a realização de quests mais compostas, como num qualquer bom MMO.

A forma como Cline pinta um futuro provável e plausível num mundo híbrido entre o real e virtual prevê a ascensão das plataformas de e-learning, de serviços mistos entre o real e o virtual, de avatares que nos libertem das barreiras físicas e geográficas, de monetização omnipresente e, também ela, híbrida, dando o salto do virtual para o mundo real. Para as empresas, torna-se forçoso marcar presença no Oasis, sob pena de se tornarem inexistentes. A exemplo do que se vai passando, em menor escala, com algumas redes sociais. Para um canal de televisão, não estar no Facebook é não existir. Para uma loja, não ser facilmente encontrada no Google, é não existir. E se não se está acessível às pessoas e clientes quando eles nos procuram, de que vale a pena existir? Em Ready Player One só existe o que está no Oasis. Ler um livro? No Oasis. Ir à escola? No Oasis. Pedir uma pizza no Oasis faz com que a empresa real nos leve a pizza a casa. O Oasis tem tudo. E se tem tudo, não poderia faltar a polícia, com avatares 24/7 intercambiáveis entre diversos agentes. Entrar ao serviço é tomar o lugar do parceiro no jogo e vestir a pele de uma espécie de Robocop com os poderes de Harry Potter, do Batman e do Lich King. Oasis assume a realidade, mas continua a ser um jogo, um ambiente virtual, onde as fronteiras se erodem com cada nova mecânica de jogo. Sim, somos nós, mas o nosso avatar pode ser o que dele quisermos fazer. E se a nível 1 o nosso avatar é a mais perfeita imagem do nosso eu real, a nível 100 podemos ser o Gandalf a pilotar o Millenium Falcon até à nossa humilde mansão com 324 quartos e 5 quilómetros de piscina no nosso planeta privado onde todos os cavalos são cor de rosa e defecam donuts e ovos moles. O Oasis é um mundo cor de rosa, repleto de possibilidades, dentro de um mundo de lama, pobreza e desigualdades onde quem vive nos bairros de lata dificilmente consegue aspirar a algo mais, refugiando-se por isso no idílico mundo do Oasis.

O livro – e, espera-se, o filme – são portanto uma projecção com maior ou menor exagero daquilo que somos hoje e poderemos ser daqui a uns anos, fruto das evoluções no ramo da tecnologia, dos videojogos ou dos serviços e sistema político. Mas a história entra em erupção com a morte do criador de Oasis que, no seu testamento, deixa o controle do Oasis a quem encontrar uns Ovos escondidos no multiverso por ele criado. A única pista é um críptico texto que leva milhões de aspirantes a seguir as pegadas do criador de Oasis por todo um labirinto de referências a cultura pop, incluindo música, cinema e, claro, videojogos. O futuro, em todo seu esplendor, a olhar para trás e fazer uma reverente vénia a Pac-Man, a Galaga, a Joust, a Spacewar e a outros jogos dos primórdios do entretenimento electrónico, passando por escritores e livros que ajudaram a construir todo um imaginário comum onde nos banhamos diariamente sem por vezes o reconhecermos, como Tolkien, Frank Herbert, Terry Pratchett, Stephen King, Neil Gaiman ou o já mencionado William Gibson. E, claro, sorvendo sofregamente referências a música e filmes, desde os Ghostbusters a Oingo Boingo, passando por Monty Python, Star Trek, Duran Duran, Steven Spielberg e outros, muitos outros. São dezenas e dezenas de referências a jogos, filmes, séries, actores, autores e escritores que são carinhosamente embaladas na curva do braço de Cline, num derradeiro tributo a tudo o que fez de nós o que somos hoje enquanto apreciadores de cultura. Centenas de referências que pingam mel e nostalgia ao longo das páginas que compõem o livro e que, espera-se, se vejam espelhadas, também como tributo, dentro do filme.

A quest de descoberta dos Ovos está recheada de exigências de conhecimento e de perigos, de outros caçadores de ovos, onde se destacam as grandes empresas, aspirando e esfregando as mãos ante a perspectiva de controlar o maior negócio do mundo. Com recursos longe do alcance daquilo a que um comum mortal pode aspirar, as grandes empresas controlam avatares multiposto, veículos, magias e todo um arsenal que podem usar para lutar, manipular ou subornar aqueles que se lhes oponham.

É por essa trama que Ready Player One nos conduz ao longo de uma história que pinta uma das projecções do futuro mais plausíveis ou com mais pontos de ligação com o presente. E é isso que queremos ver passado para o cinema com a mesma qualidade de um E.T. ou um Goonies!