Mystery Box é uma rubrica mensal de temas-surpresa aleatórios ligados aos jogos e a outros meios interactivos, digitais e não-digitais, apresentada por Isaque Sanches.

Já ouviu falar de Lucius Demake?

Lucius Demake é um videojogo sem razão para existir e que ainda bem que existe.

Estamos em Outubro de 2012. Lucius, jogo independente, primeira aposta do estúdio finlandês Shiver Games, chega à loja Steam.

O lançamento de Lucius foi adiado pelo menos uma vez, esteve o que pareceu ser uma pequena eternidade em desenvolvimento, e a sua campanha publicitária parecia ser improvisada – ora o jogo ressurgia do esquecimento, ora voltava a cair no mesmo.

Shiver Games conseguiu, no entanto, aguçar a curiosidade de quem esteve atento pela aparente mistura estranha de elementos.

Lucius apresentou-se como um sandbox em mundo fechado, com mecânicas que lembravam Hitman e uma estética que homenageia o filme The Omen. O jogador controlaria uma criança em terceira pessoa, encarnação do Anticristo, que em cada nível mataria um habitante diferente de uma mansão enorme, de forma furtiva, recorrendo a objectos comuns, às circunstâncias da mesma, e a poderes sobrenaturais, dando a impressão que as mortes eram acidentes.

Lucius Demake é um jogo 2D também criado por Shiver Games.

A premissa bizarra de Lucius Demake, mais bizarra ainda que a de Lucius, é virtualmente inexplicável sem explicar também a série Lucius. Quem seguiu o primeiro Lucius e o comprou terá constatado que a bizarria não era só marketing, não existia só no papel: a jogabilidade é estranha, transversalmente, desde de pequenos pormenores a decisões macroscópicas.

Enquanto que a opinião da crítica foi-se mantendo polarizada, a opinião pública convergiu para um consenso: o jogo foi-se transformando em objeto de pequeno culto à medida que ia encontrando o seu nicho. Estamos agora em 2015. Lucius II chega à loja Steam.

A sequela andou menos na boca do mundo, recebeu menos cobertura. Uma vez que já existia um público fidelizado, o lançamento desta vez contou com menos preliminares.

No entanto, o público não reagiu bem desta vez. Os fãs do primeiro foram ainda mais duros: a série evoluiu numa direcção que lhes roubava aquilo que tinham amado no primeiro jogo.

Estamos finalmente em Agosto de 2016.

Shiver Games lança um remake de Lucius em 2D, em estilo 8 bit. Lucius Demake.

Quem conta um conto acrescenta um ponto, e reza a estória, agora com contornos de mito, que um fã terá enviado ao estúdio uma imagem inspirada no jogo em pixel art, e que daí terá surgido a inspiração para este terceiro jogo.

Demake mantem as mecânicas e o enredo, mas transforma tudo o resto. De acordo com SteamSpy tem sido pontuado melhor que os primeiros dois jogos. Uma ideia bizarra, executada bizarramente, num jogo mais bizarro que a soma das suas partes, torna-se ainda mais bizarro.

Na verdade, Demake retém o melhor de um jogo quase medíocre mas com um high concept muito bom, mas deita fora o pior.

Por exemplo, o desenho de nível e a interface não eram muito intuitivos em Lucius. Não era infrequente o jogador andar aos círculos, frustrado. A simplicidade de Lucius Demake, no entanto, abafa esse ruído.

Uma vez que não tem aspirações de realismo também tem, por exemplo, mais liberdade na composição de imagem e na palete de cores. O mau voice-acting de Lucius também fica resolvido. O framerate não sofre. Com muito menos que o original, Demake chega mais longe, oferece uma experiência mais rica.

Há um quê de desconfortante nas coisas antigas, essa é a razão pela qual não só The Omen, onde Lucius foi buscar inspiração, como outros filmes de terror são passados em mansões velhas. Mais curioso ainda, o filme The Ring, a título de exemplo, envelheceu muito bem: há medida que o tempo passa talvez haja algo cada vez mais ameaçador acerca do VHS.

Analogamente, também é possível que algo mais ameaçador surja da estética 8-bit; de propósito ou por acidente. Onde antes havia (péssimo) voice-acting, agora há uma ausência de vozes que resulta num silêncio permanente, preenchido pela a música estilo-slasher, que combina melhor com as cores, mais poderosas e opressoras, e com as caras distorcidas pelo pixel art.

Seja o que for que Lucius é, ou que os seus autores queriam que fosse, não sei nem uma nem outra coisa, sei pelo menos que é jogo que em determinada altura retrata uma criança homicida a fazer voyeurismo depois de falar com o Diabo.

E, seja o que for, sou da opinião que ganhou algo, pelo menos no género do horror, por esse tipo de momentos se passarem num ecrã que faz lembrar a primeira consola portátil da Nintendo.