Se nos podem enfiar qualquer coisa pela garganta abaixo, arrogo-me o direito de fazer trocadilhos parvos.

Os videojogos são um negócio. E se esta afirmação soa a lapalissada, desenganem-se. É tão frequente cedermos ao romantismo de sentir que as mega-corporações querem fazer bons jogos pelo amor à Arte e por amor a todos nós, que sustentamos as suas pesadas torres de marfim. Quantas vezes sentimos o peso da emoção a falar mais alto e a predominância artística e autoral fala mais alto que a pressão dos accionistas, dos números e quejandas tensões económicas.

Lembremo-nos do caso da fatídica Wii U. Com possibilidade de criação únicas, de jogabilidade dual em simultâneo, com uma margem de progresso e inventividade que nos fez lembrar do entusiasmo de Nicklas Nygren quando o entrevistámos na Gamescom 2014 perante as possibilidades que a (na altura) nova consola da Nintendo oferecia em termos de experimentação conceptual. Essas características únicas permitiram uma grande aposta de terceiros, em especial dos gigantes corporativos? Não. Porquê? Porque números. E números falam mais alto que qualquer coisa.

A panache colectiva com o aparente carinho de muitos dos grandes third-parties para com a Switch soa a promessas de amor incondicionais, a fazer lembrar os cretinos que só dão atenção da rapariga tímida do liceu que até tinha uns quilos a mais, agora que ele está mais magra, que se produz e que já desperta as atenções de outros e outras. “Sempre amámos a Nintendo” parecem dizer os directores da Bethesda entre sorrisos deslavados, à medida que olham para a consola híbrida da Nintendo e vêem o quão facilmente conseguem fazer dela uma máquina de imprimir notas, muito graças à total massa acrítica que constitui o consumidor-tipo da Nintendo.

As duas coisas que um fanboy nunca irá admitir é que por um lado o seu objecto de predilecção pode ter pés de barro, e por outro, reconhecer a sua própria acrítica patológica. Um sportinguista raramente vai admitir que os maus resultados da equipa são consequência da sua falta de qualidade, assim como um benfiquista dificilmente perceberá qualquer tipo de favorecimento arbitral. E se trazer os exemplos futebolísticos não for redutio ad absurdum suficiente para percebermos na prática como funciona qualquer estirpe de fundamentalismo-fanboyista, basta analisarmos o quanto o “nintendista” típico pouco se importa que lhe enfiem trampa pela goela abaixo: se levar o logo da Nintendo tudo é consentido. 

Esta recém-paixão da Bethesda pela Nintendo deve-se tão somente a um factor: o sucesso comercial da Switch. Esta vontade da companhia que levou à histeria em torno do port de alguns dos títulos recentes para a nova consola da Nintendo criou uma onda de aceitação de tudo e qualquer coisa que seja posta no prato.

Verdade seja dita, no cinismo frio dos números e no consequente sucesso da Switch e da aproximação de gigantes third-parties é que se mede o sucesso a médio-longo prazo da plataforma. Todos queremos que novos jogos multi-plataformas venham para a Switch, especialmente aqueles que utilizem as características únicas da consola sejam desenvolvidos e tragam algo de verdadeiramente novo ao mercado. Recauchutar jogos apenas porque a maioria do público é como o domingo de manhã, é exactamente aquilo que ninguém quer. Ou um número reduzido de pessoas não quer.

DOOM é, e sempre será, um dos marcos de desenvolvimento do mercado. O jogo recente, e citando o Miguel Nogueira que foi quem se debruçou sobre o jogo aquando do seu lançamento, “O novo DOOM é o jogo que já não nos lembrávamos que precisávamos.”. Há um retorno ao clima frenético da série e de avanço tecnológico do próprio mercado que a id Software trouxe com este regresso a DOOM que nos relembrou o seu papel histórico para os videojogos. Trazer este título de 2016 para a Switch é certamente um desafio técnico, cujos resultados “positivos” têm recebido laudos elogiosos de todos, com urras de furor e felicidade toldados pelo cheiro húmido da roupa interior dos fanboys, que vêem o famoso título a chegar à Switch e já não sentem que estão reféns da produção interna da Nintendo como estiveram com a Wii U. Mas a que preço?

Se eu tenho sérias dúvidas que um jogo intenso como DOOM (de 2016, mas não só) tenha o mesmo usufruto com um comando como deveria ter na sua plataforma nativa, o PC, jogar a versão da Switch é atroz e demonstra o quanto a id Software e a Bethesda se estão pouco importando para o que sai cá para fora. E os resultados comprovam-no: as críticas (e potencialmente as vendas) demonstram que para além de resolverem o problema de “quantas pessoas cabem num Mini”, não precisavam de fazer muito mais para obter sucesso quase instantâneo.

Raramente me queixo de potencialidades gráficas, e percebem-se as concessões que tiveram de ser feitas para pôr DOOM a correr numa Switch. Mas irrita-me profundamente a necessidade de mascarar o enfraquecimento visual com aquela névoa constante que me assemelha um dia inteiro de escritório com as lentes de contacto postas ou uma espera virtual pela manhã do regresso do D. Sebastião. Na versão portátil é ainda mais evidente este embaciamento constante que incomoda mais do que ajuda a receptividade ao jogo, e o quão fraco-por-comparação fica este port quando pensamos nas versões originais. Antes um verdadeiro demake que esta solução intermédia.

Por outro lado, não aproveitar as especificidades únicas da Switch e dos seus Joy Cons demonstra o quão preguiçoso acabou por ser este port, e que não justifica (ao contrário de FIFA) os factores e especificidades de jogar on the go, e na prática, qual o verdadeiro intuito deste port. “Aquela gente come qualquer coisa” dizem os membros do board de accionistas da Bethesda enquanto gargalham para o ar caricaturalmente, queimando notas de dólar para acender charutos durante toda a cena. E têm toda a razão para sentir isso.

Por todo o lado vejo aplausos pela excelência técnica de terem conseguido colocar DOOM a correr na Switch, ao mesmo tempo que desculpam o facto de terem transformado um jogo visualmente rico e dinâmico no acordar de um míope. Excitam-se nervosamente com a portabilidade do jogo quando a sua forma de controlo poderia ser infinitamente exponenciada pela Switch com motion aim, respeitando a plataforma e elevando realmente a experiência, sem passar a mera imagem de que basta fazer um port qualquer que a malta come e cala.

DOOM é a prova que o pior inimigo da Nintendo é, em muitos sentidos, a sua própria fan-base. A forma como felam qualquer jogo que seja lançado na sua plataforma de eleição enfraquece o verdadeiro motor que deveria fazer mover os videojogos: o risco, a experimentação, a aventura criativa. O modo como glorificam todo o e qualquer port para a Switch sem perceber que era exigência mínima de equipas da dimensão das da id Software de adaptarem e reinventarem o jogo para a consola.

A seguir vem Skyrim, e sabemos de antemão que o fulgor de todas estas ejaculações precoces em torno do jogo na Switch demonstra que não é preciso avançar muito, que o mercado já fica feliz, apaziguado, e de bolsos cheios com uns ports quaisquer.