Existe por vezes uma necessidade de nos identificarmos com algo, é uma condição humana, inerte. Não é algo que se faça diariamente ou até voluntariamente mas é algo que se sente com regularidade.

Não é o que aconteceu com Betrayer. Achei na minha inocência que era apenas um FPS de época engraçado, com uns toques de arte muito interessantes. Comecei a jogar esta “coisa” como uma forma de combater aborrecimento após um random na minha infindável steam library.

Lembro-me perfeitamente da primeira experiência com Betrayer, estava a processar uma directa, com a minha então namorada a poucos metros de mim a dormir após ter reclamado comigo durante 30 minutos por estar a fazer muito barulho a jogar. Escusado será referir que após tal situação a minha vontade para pensar muito num jogo era reduzida. Este talvez tenha sido o aleatório mais agressivo que já apanhei. Nada podia fazer antecipar os momentos que viriam a seguir. Quem já me conhece sabe que à uns anos me foi diagnosticado Borderline Personality Disorder e mais recentemente Bipolaridade, o que é que isto importa? Vão perceber mais à frente.

Betrayer retrata um assunto replicado vezes sem conta no cinema e na televisão, aqui referenciado de uma maneira diferente e muito interessante. O coração e alma deste jogo é a “guerra” colonial nos Estados Unidos no século 17, ou o genocídio da comunidade nativa Norte Americana, ou a perda de algo que nos é garantido mas roubado como se nunca nos tivesse pertencido. A dor, a conquista, a destruição de milhões de famílias e a crença numa nova civilização a nascer no túmulo de outra. Um pedaço de história muitas vezes esquecido porque como sempre a guerra é escrita por quem ganha, claro que na visão do novo mundo, os índios não foram roubados dos seus privilégios, foram integrados numa nova civilização mais evoluída.

Mathew 12:30 – “Whoever is not with me is against me, and whoever does not gather with me scatters.”

Reacção óbvia: “já ouvi falar disto antes”, mas! Lembram-se do que vos contei sobre Bipolaridade? É aqui que entra, não directamente a Bipolaridade como condição de saúde humana mas sim como visão social de eventos passados, presentes e até futuros. O jogo baseia-se numa mecânica de transição de “mundos”, saltamos ao toque de um sino entre um mundo colorido e selvagem e um mundo completamente pintado a preto e branco com a excepção de alguns tons de vermelho que ajudam a criar uma atmosfera assustadora. Amo tudo neste jogo em todo o sentido empírico da coisa, parece exagero mas não é. Nestas duas visões completamente extremadas vemos monstros diferentes em cada uma sendo que num lado são claramente “conquistadors” espanhóis possuídos por algo demoníaco, talvez a sua própria fome de conquista, e no outro lado, esqueletos e espectros de vidas claramente perdidas no tempo e espaço, tanto colonos como nativos.

O que aconteceu aos humanos? Onde estão os habitantes da colónia para onde íamos inicialmente?

É esse o objectivo do jogo, descobrir o que se passa. Talvez alguns de vocês conheçam a história da Colónia de Roanoke, também conhecida como a colónia perdida que já apareceu em inúmeras séries, tais como American Horror Story e uma que gostei particularmente da sua rendição da história, Sleepy Hollow. Quando nos afastamos um pouco da crítica social, entramos nesta história, onde durante a guerra Anglo-Espanhola, em teoria, todos os habitantes desta colónia inglesa desapareceram sem deixar rasto. Suspeitas caem sobre uma possibilidade de o povo ter sido absorvido por uma aldeia nativa local, ou assassinada sem deixar rasto por uma outra aldeia nativa ou exército espanhol.

A exploração social e histórica deste jogo é muito bem calculada e de toda a maneira pesada, e sublinho fortemente a palavra pesada! De uma forma que vão aprender a odiar a “evolução” e a amar a mesma. Este período de colonização foi tão nojento mas tão interessante-mente triste. Como pode o mundo evoluído ser mais selvagem que o mundo selvagem evoluído? A quem pertence a terra? A quem nela sempre viveu, ou a quem a conquista? Ambas as respostas estão erradas e certas.

Nunca existe apenas uma verdade mas na maior parte das vezes, senão em todas, a verdade adquirida é escrita pela equipa vencedora. Neste momento estou a ouvir “Doing The Right Thing” pela artista Daughter mas o que é a coisa certa no teu futuro quando foram os teus antepassados a decidir o teu presente?

Os Estados Unidos da América são sem dúvida a maior potência económica e militar mundialmente mas seria esta uma realidade se este período negro da nossa história não tivesse acontecido? Não. O genocídio de uma cultura nativa lindíssima foi correto? Não. Podemos anular alguma destas respostas? Não. Alguém decide o nosso mundo alterando o nosso passado e isso é evidente em Betrayer. E sim, ainda estamos a falar de um jogo.

Odeio o que este jogo me faz sentir mas amo o sentimento que este jogo me traz. Desafio cada um de vós a passar esta aventura, analisando cada passo, e lendo cada texto até ao fim. Olhem para o passado. Vivam uma mentira escondida.