Contam-se histórias desde os tempos imemoriais, em variadas formas e feitios. Em Roleplay o contador de histórias partilha responsabilidades criativas com os jogadores. Desse modo, este tipo de história colaborativa interactiva apresenta desafios especiais.

Num livro o papel do leitor é algo limitado. O máximo que este pode fazer é acelerar o passo de leitura por passar por alto algumas páginas, e imaginar… Já nos livros de Aventuras Fantásticas, publicados em Portugal pela Verbo, o leitor tinha a possibilidade de influenciar a direcção da história por fazer escolhas pelo seu personagem, que se materializavam num salto para a página em que continuaria a ler. Esta mecânica, explorada de forma engenhosa para criar na história bifurcações, mistérios e até mesmo conflitos armados aliados com um certo grau de aleatoriedade, era abertamente inspirada nas aventuras de Roleplay de mesa, como Dungeons & Dragons.

As aventuras de Roleplay, ao contrário dos livros mencionados anteriormente, eram desenhadas para serem jogadas como uma conversa entre amigos à mesa. Este jogo invulgar de contar histórias dividia os jogadores em dois papéis assimétricos. Um dos jogadores, jogando como mestre de jogo é responsável por milhentos papéis, incluindo o da estruturação da narrativa. Os outros jogadores têm a responsabilidade de interpretar uma personagem e suplantar os desafios que o mestre vai colocando à frente dos seus personagens.

NOTA: Existem vários tipos de jogos de Roleplay de Mesa. De seguida abordaremos apenas o RPG de mesa tradicional. Os casos práticos serão aplicados tendo em conta Dungeons & Dragons 5ª edição (D&D 5e), no entanto, o artigo deverá ser aplicável a qualquer jogo narrativo onde o papel do mestre seja o tradicional. De fora deste exercício fica portanto, uma grande panóplia de jogos: jogos cuja narrativa seja estruturada mecanicamente (e.g. Follow, Veridiana), jogos de criação pura (e.g. The quiet year, Universalis) ou LARPs cuja narrativa seja emergente (e.g. Bottle quest, Ouça no volume máximo).

O combate como estrutura narrativa

Em diversos momentos, no RPG de mesa tradicional, estes desafios tomam a forma de combate. Ao contrário dos outros aspectos de narrativa, onde a responsabilidade de qualquer estruturação narrativa cabe ao mestre de jogo, e/ou ao escritor do cenário, os combates tiveram uma tendência desde cedo para serem estruturados rigidamente pelo designer do jogo. Conscientemente ou não, esta preocupação estrutural provoca que o mini-jogo de combate tenha assumido em si, na minha opinião, uma responsabilidade estrutural narrativa de 3 actos que é colmatada através da criação de uma série de técnicas de design que me proponho explorar de seguida.

Se tivermos de comparar uma luta a uma estrutura narrativa, teremos o primeiro acto como a secção onde os antagonistas se dão a conhecer e os personagens compram a premissa, durante o segundo acto teremos escalada de conflito, história b, introdução de novos agentes, sobejar dos vilões, momento negro da alma e a reviravolta ou clímax onde os heróis derrotam o vilão. Durante o terceiro acto será a distribuição de recompensas e desenrolar da situação.

NOTA: Como estrutura narrativa durante este artigos consideraremos uma estrutura simplificada de 3 actos tradicional, com momentos inspirados na jornada do herói e no livro Save the Cat de Blake Snyder. Em nenhum momento o autor defende que este seja o único tipo de narrativa possível ou desejável, no entanto trata-se de um formato com provas dadas e útil para o exercício a que se propõe.

 

O Primeiro Acto

O primeiro e o terceiro acto, que são oportunidades de revelar a importância dos eventos que se desenrolam durante o segundo (a luta propriamente dita), e que tão frequentemente são desprezados pelo mestre, tomam suprema importância. É crucial que os jogadores percebam as stakes, ou porque se luta e o quão mortífera esta peleja é, algo que só se pode revelar neste primeiro acto. Deverá também ser revelada a natureza do vilão, o que este pretende, mesmo que este conhecimento seja parcial ou erróneo, de forma a acomodar um volte-face no enredo.

Caso o Mestre deseje começar o combate de surpresa (e.g. no caso de uma emboscada), o primeiro acto deverá ser resolvido durante os primeiros minutos do combate. No caso de D&D 5e isto pode ser alcançado durante a primeira ronda de combate, mas antes de entrar na segunda. Empenhando os jogadores na troca de palavras com o antagonista, na descrição do antagonista ou de outros elementos, permite-se que respostas, mesmo que provisórias, às seguintes perguntas sejam claras na mente dos jogadores:

  • quem é o antagonista
  • o que deseja o antagonista?
  • porque o antagonista deseja isso?

Nota: aqui fala-se do antagonista como um, mas este pode ser colectivo (e.g. vários monstros), ou impessoal (e.g. uma tempestade).

Elementos descritivos e o seu papel durante o primeiro acto

Outro aspecto importante durante o primeiro acto é a descrição cabal do lugar onde se desenrola a ação. Os pormenores adicionados devem ser da seguinte natureza:

  • elementos que possam dar vantagem, desvantagem ou usados por algum dos protagonistas durante o combate
  • elementos que dêem pistas para a natureza do vilão ou antagonista e os seus objectivos
  • sementes que justifiquem elementos que podem ser introduzidos durante a luta para garantir um clímax satisfatório.

Elementos a serem usados durante o combate

Elementos que podem ser usados durante a luta, como esconderijos, armas improvisadas, barreiras físicas ou psicológicas (objetos de valor sentimental), não só aumentam o nível táctico do encontro mas permitem uma maior variedade nas descrições, continuidade narrativa, imersão e escolhas interessantes à mercê dos jogadores.

Elementos que revelam a natureza do conflito

Caso se trate do lar do vilão, será fácil imaginar como a descrição do mesmo pode dar imensas pistas sobre a natureza do conflito. Responder às questões levantadas no primeiro acto, justificará a necessidade da peleja e revelará o que está em jogo. Mesmo que o lugar do encontro pareça aleatório, a escolha deste por parte dos antagonistas pode revelar o grau de inteligência do mesmo, suas crenças e valores. A vestimenta, os itens, escolha de armas e armaduras e por último, bem mais óbvio mas de suprema importância, o que dizem não só através da fala, mas por meio dos gestos e posição corporal, todos estes aspectos aumentam o dramatismo da cena, respondem às perguntas  e ajudam à imersão.

Sementes para elementos ainda não introduzidos

Alguns pormenores devem ser semeados em relação à natureza de possíveis reveses e surpresas a surgir mais adiante, que permitam alongar ou encurtar o segundo acto. Em literatura clássica, nada deve ser semeado que não seja posteriormente colhido ou de relevância para a cena. Em narrativas não-lineares, abertas, aleatórias e colaborativas como é o caso do roleplay de mesa, o uso destas sementes torna-se essencial para devolver algum controlo de direção narrativa ao mestre. Desta forma é aceitável semear sem colher, desde que o faça parcimoniosamente.

Por exemplo, um encontro pode não ser tudo o que parece, e é muito bom surpreender os jogadores a meio. No entanto, pequenas pistas devem ser dadas para que a surpresa não azede na boca dos jogadores, por parecer um Deus Ex Machina (ou seja, algo que o mestre tirou da cartola assim do nada, e que não liga com a narrativa até agora). Uma das maneiras de tornar estas pistas menos óbvias será introduzi-las num dos elementos anteriores dando-lhe duplo significado.

Exemplifique-se: No lar do vilão vocês encontram um quadro do vilão com a sua família, dois filhos e sua mulher. Este elemento servirá não só para revelar a natureza do vilão como homem de família (background). Introduz o que pode ser uma das suas justificativas morais. Abre a possibilidade para que a meio da luta o seu filho mais velho surja com alguns guardas de reforços. O Mestre ganha controlo narrativo por tornar mais satisfatório um combate que se tenha tornado de inesperada curta resolução.

Antevisão do próximo artigo

No próximo e conclusivo artigo abordaremos técnicas disponíveis ao Mestre de jogo ou Designer para tornar o segundo e terceiro actos interessantes para os jogadores. Como estruturar uma narrativa durante a fase de combate, que em Roleplay tradicional se baseia em aleatoriedade?