Pedimos desde já desculpa se abriram o artigo a pensar na genial série do Charlie Brooker. O artigo sobre a quarta temporada e as ligações com videojogos deve surgir ainda esta semana, mas este artigo é sobre a primeira série audiovisual a utilizar esse título. Black Mirror, a aventura point ‘n click que estreou em 2003 e que se tornou uma trilogia, que trocou de mãos diversas vezes até chegar à propriedade da THQ Nordic, e que teve há 2 meses o seu reboot.

A expectativa, da minha parte, era alta. Não só por ter gostado dos jogos originais, mas sobretudo porque a responsabilidade do seu desenvolvimento recaiu sobre o estúdio que não só conheço pessoalmente, como fizeram uma das séries do género mais interessantes desta década. KING Art Games, responsáveis pelos magníficos The Book of Unwritten Tales soavam-me à opção óbvia para esta aposta da THQ, e para trazer Black Mirror para a contemporaneidade.

Neste reboot de 2017, passado nos anos 1920 na Escócia, temos como protagonista David Gordon, o descendente do poderoso e milenar clã escocês que no pico do seu poder conseguiu expulsar as Legiões Romanas das Terras Altas. É claro que como jogo de aventura como aura de terror, que tenta mimetizar o ambiente da literatura de Poe e de Lovecraft (havendo até livros destes dois escritores como easter eggs que encontramos na biblioteca da mansão), Black Mirror aborda a morte (ou suicídio) do pai de David, John, e a suposta maldição que assola a varonia Gordon.

Há diversos elementos que nos saltam à vista pela positiva nos primeiros instantes em Black Mirror, e o ambiente negro e pesado é um deles. Apesar de alguns glitches de animação e renderização com os quais tropeçamos ao longo de todo o jogo, a capacidade dos artistas do estúdio KING Art Games em reproduzir o ambiente gótico para este jogo é realmente exímia. A escuridão quase omnipresente confere o ambiente certo àquilo que poderíamos entender como uma tradução em videojogo do ambiente construído pelos mestres da literatura da época, ainda que esta obra não atinja essa interpretação de forma plena.

O voice acting e a construção sonora do jogo são excelentes, mas menos não seria de esperar da equipa que desenvolveu os The Book of Unwritten Tales. É curioso como tantas são as vezes em que achamos que a representação dos actores de voz não fazem jus aos enredos e aqui é precisamente o inverso. Apesar da inspiração deste Black Mirror serem as histórias que veríamos habituais dos grandes escritores da chamada “literatura de cordel”, a sua história acaba por ser demasiado previsível e com grandes problemas rítmicos.

Essa problemática da cadência do desenrolar da história causa um grande peso ao próprio jogo. Apesar de toda a acção dos 5 capítulos que compreendem o jogo se passar praticamente na mesma área, com um grande destaque para o castelo Sgàthan Dubh (Black Mirror, em gaélico escocês), penso que só após umas 2 horas de jogo é que consegui criar um mapa mental de todas as divisões da tenebrosa mansão. A falta de um mapa acaba por estender artificialmente a jogabilidade, e se parte de mim concorda com esta decisão por nos colocar na pele a sensação de desnorte do nosso protagonista que pisa o chão frio de Sgàthan Dubh pela primeira vez, por outro lado o cansaço causado pelos inúmeros loads entre divisões tornaram-se ainda mais frustrantes quando me enganava no caminho para determinada sala.

Aliás este “pecado” do backtracking é possivelmente o que mais me surpreendeu pela negativa, precisamente por conhecer do que é capaz a equipa do estúdio KING Arts do ponto de vista de encadeamento sequencial de um jogo de aventura. Com poucos puzzles excessivamente ligeiros e de fácil resolução, passamos a maior parte do tempo a tentar activar os triggers necessários para que o jogo avance do que a cumprir o mindset de um jogo de aventura. Percebe-se (ao contrário de em TBoUT) que houve aqui um espírito de contenção de utilizar ferramentas clássicas de jogos point ‘n click para tornar Black Mirror o mais acessível possível a um largo espectro de jogadores, com sacrifício tonal para todo o jogo. Muito mais diálogo (e nem sempre interessante) do que puzzles ou mistérios (e também eles raramente interessantes).

Apesar dos clichés, o enredo vai mesmo servindo de motor à nossa curiosidade e vontade de ir mais longe e de conhecer a verdade sobre os mistérios que assolam os Gordon e o Castelo Black Mirror. O build-up para os diversos twists que chegam no final do quarto e durante o quinto capítulo só caiem na dor anti-climática pela tremenda desilusão do desfecho do jogo, que é, não só altamente expectável, como uma saída pela porta pequena de todas as atrocidades, crimes e terror que preenche todo o restante enredo.

Grande parte do jogo é passado na escuridão, e ainda que isso seja frustrante na maioria das vezes é um elemento assumido como parte integrante do jogo. A necessidade de percorrermos os corredores de Sgàthan Dubh com uma fonte de luz (ou os nossos eventuais parceiros trazerem uma) é aquilo que ajuda a criar um ambiente único a este jogo.

De todos os elementos de brilhante construção, entre o voice acting e a música, passando pelo cenário sempre carregado por onde deambulamos, culminando nos bons momentos de visões sobrenaturais que David tem e que mesclam o passado com presente, nota-se no entanto um sabor amargo por percebermos que o jogo não é tão bom quanto poderia ter sido.

Com uma equipa de tanta qualidade e uma história interessante dentro dos clichés conceptuais do género, há problemas de ritmo óbvios e de superficialidade de jogabilidade, onde o tempo passado poderia ser preenchido com mais e melhores puzzles que se integrassem com qualidade em todo o jogo e enredo, do que o deambular vazio ao qual somos obrigados na maioria das vezes.

Um regresso “bonzinho” às boas aventuras point ‘n click tridimensionais, depois da desilusão com Syberia III mais ou menos pelas mesmas razões que neste Black Mirror. O timing, esse, não poderia ser o mais oportuno, e acredito que a pressão da THQ Nordic em atirar este reboot cá para fora e encarrilá-lo com todo o furor da série de TV em muito tenha contribuído para aquilo que ainda faltava fazer para que este Black Mirror estivesse a par do seu potencial e da qualidade que os seus criadores já outrora provaram que possuíam.