Há dias em que queremos apenas ser maus. No meu caso, e desde criança, houve sempre uma grande proximidade com os vilões em qualquer coisa que eu olhasse. Os colegas de escola babavam com o Bumblebee e o Optimus Prime, mas eu torcia constantemente pelo Starscream (o meu Transformer favorito), ou mesmo em Masters of the Universe em que Skeleton e a Evil-Lyn preenchiam as minhas preferências. E visto que os “maus” tinham sempre de perder por obrigação, desde cedo pensei: “e se pudermos um dia ver o mundo pelos olhos deles, e quiçá, levá-los à vitória”? Fazer “o bem” (seja lá a definição judaico-cristã disso) já é algo que ocupa a vida real, portanto há espaço, nem que não seja de forma virtual e humorística, para praticarmos “o mal”.

Ver a palavra Dungeon e um 3 no mesmo título quase que nos faz salivar da boca na antecipação daquilo que será até ao fim do mundo um dos jogos mais esperados mas que nunca vai existir: Dungeon Keeper 3. Depois de muito tempo perdido em Dungeons 3, desenvolvido pelos Realmforge Studios e publicado pela Kalypso, apraz-me dizer: quem é que se lembra de Dungeon Keeper 3 quando pode ter este jogo na mão?

Aliás, vamos já retirar o gigantesco mamute mutilado da sala: Dungeons 3 é melhor que Dungeon Keeper. É verdade que sem este não existiria o outro, e que já 20 anos se passaram, mas vamos já perceber porquê.

Há muito tempo que o enredo de um jogo não me fazia rir desta forma. Apesar de Dungeons 3 retratar um mundo fantasioso onde nós somos O Mal, a construção cénica está feita para que nos riamos sempre que o narrador (ou qualquer um dos personagens) intervêm. Falando especificamente do narrador, que é interpretado por Kevan Brighting (o mesmo que emprestou a voz a The Stanley Parable) e que nos lê um dos melhores textos de acompanhamento de um videojogo de que me lembro. Sejam as piadas meta-gaming, onde o narrador é consciente de que está num jogo, e que aproveita para enviar umas indirectas à própria equipa dos Realmforge Studios pelo facto de achas que está a ser pago menos do que devia, e de que os antecessores de Dungeons 3 não eram assim tão bons. E tem razão nisso. Por outro lado a forma como ele acaba por provocar e menosprezar os personagens, apontando-lhes os clichés do género e fazendo pontes com as inspirações de LotR e WarCraft tornam todas as intervenções de Kevan uma delícia que joga na perfeição com o ambiente de estratégia do próprio jogo.

Dungeons 3 é um jogo que exige muito da nossa concentração e capacidade de multitasking. Existe aqui uma dualidade mecânica entre um RTS e um god game/construction and management simulator, entre gerirmos o mundo subterrâneo onde a nossa masmorra está situada, e a superfície, onde atacamos os humanos, elfos e anões, e tentamos estragar-lhes o dia, ou vá, matá-los.

O centro do jogo, é a gestão da nossa masmorra, cujo mini-mapa fica localizado no canto inferior direito. É lá que temos de recolher recursos como ouro e mana, onde vamos pesquisando novas tecnologias e novas criaturas, e onde as “criamos” e mantemos. É aqui também que se encontra o Dungeonheart, o nosso coração, que ao ser destruído nos leva também à morte.

Neste mundo subterrâneo a nossa existência é representada por uma manopla de ferro, com o qual podemos dar ordens aos nossos servos e exércitos, ou pegar neles e atirá-los para tarefas e divisões específicas, ou esbofeteá-los se estes não estiverem a cumprir o que esperamos. É também neste interface que definimos o que tem de ser destruído e construído, e fazê-mo-lo de forma facilmente compreendida, num sistema típico de jogos de estratégia e de gestão.

À medida que os recursos vão escasseando e vamos estourando com as reservas de ouro, sentimos a necessidade de ir escavando mais a fundo na nossa masmorra, e é aí que algumas desagradáveis surpresas são reveladas. Sejam elas cavernas com dragões, vermes, ou aranhas, basta-nos enviar as nossas criaturas para as derrotar para termos mais uma sala para preencher na nossa masmorra.

Mas a partir dos primeiros upgrades e pesquisas percebemos que necessitamos de um elemento que nos falta: maldade. Para a obtermos temos de apelar à segunda área deste Dungeons 3, os ataques à superfície, que em muito relembram a abordagem de WarCraft 3, nem que não seja pela proximidade visual entre os diversos elementos e o aclamado jogo da Blizzard.

Pegamos nos nosso heróis e nas criaturas que criámos ou invocámos na masmorra e levamo-las para a superfície, para pequenas incursões de RTS que passam, regra geral, por matar gente, muita gente. Conquistar alguns altares “dos bons” e convertê-los a geradores passivos de maldade, essa moeda que utilizamos para desbloquear os elementos mais caros do jogo.

Dungeons 3 é um excelente dungeon manager, mas o facto de nos obrigar a uma dualidade constante e simultânea entre proteger a nossa masmorra das incursões dos adversários e gerirmos pequenos exércitos na superfície para fazer avançar as missões é dos momentos mais deliciosos que tivemos nos jogos de estratégia recentemente. Tudo em tempo real, balancear o desafio de avançar muito o nosso exército na superfície ou fazê-los recuar para a masmorra, onde as armadilhas não estão a dar conta das investidas dos soldados do bem? São estas dúvidas tácticas que adicionam uma grande dimensão de prazerosa dificuldade a Dungeons 3.

Com um enredo, elenco, missões e um narrador divinais, Dungeons 3 casa na perfeição o humor brilhante e as mecânicas de RTS e de dungeon manager. Há muito que todos desistimos de sonhar com Dungeon Keeper 3, mas já nem precisamos de o fazer. Ele existe, e já foi lançado e consegue adicionar uma camada adicional de diversidade ao colocar-nos a difícil mas brilhantemente executada tarefa de jogarmos dois jogos ao mesmo tempo: entre a gestão da nossa masmorra e a aventura RTS que levamos a cabo na superfície. Peter Molyneux pode-nos ter deixado órfãos de esperança, mas a Realmforge Games veio ocupar esse espaço vazio com um jogo brilhante que foi um dos grandes lançamentos de um colossal ano como o de 2017.