Mystery Box é uma rubrica mensal de temas-surpresa aleatórios ligados aos jogos e a outros meios interactivos, digitais e não-digitais, apresentada por Isaque Sanches.

Já ouviu falar do Jogo Real de Ur?

Pela primeira vez no Mystery Box vamos ou realmente falar de caixas ou realmente falar de mistérios, neste caso de um mistério.

De há uns tempos para cá, redescobri um interesse quase obsessivo por jogos de tabuleiro, interesse esse com um forte ênfase em jogos clássicos, ou ancestrais. Um nome incontornável nesta categoria é o Jogo das Vinte Casas, também conhecido por Jogo Real de Ur, um dos jogos mais misteriosos da História contemporânea. Um jogo que serve, ou serviria, como janela para outro tempo, e cujo modo de jogar e significado cultural foi-se perdendo com o passar dos séculos.

A primeira réplica do tabuleiro foi redescoberta no século XIX em escavações arqueológicas num cemitério da realeza de Ur, uma cidade-estado que coexistiu na Antiguidade com a Mesopotâmia e se localizava no território desta. O artefacto é bastante detalhado, faz uso de materiais como lápis-lazuli e xisto, e mantém cores que ainda hoje são vibrantes. Existe hoje no Museu Britânico de Londres, onde se encontra permanentemente exposto.

Durante anos não se fazia ideia nem de como eram as suas regras, nem o contexto em que era jogado. E, na verdade, ainda muito pouco se sabe ao certo sobre o Jogo Real de Ur.

Muitos anos após a sua descoberta, depois de muitas tentativas de decifrá-lo, a descoberta de uma tábua de pedra, escrita por um astrónomo em registo cuneiforme, pôs fim a muitos debates e ainda hoje serve como um manual de jogo globalmente consensual.

O manual explica (de grosso modo) a natureza do jogo, e informa-nos pelo menos até certo ponto como o jogo era jogado no tempo do seu autor. Acredita-se que o jogo chegou a ser tão popular que a certa altura se tornou o jogo nacional da Mesopotâmia. Que chegou a ser tão comum como hoje são as damas e o xadrez; que, na verdade, pode ter sido um dos pais de muitos jogos como estes, que nós hoje vemos como clássicos.

O Jogo Real de Ur, segundo o que se pensa serem as suas regras, é tanto elegante na sua simplicidade como hiper-complexo em igual medida. As regras podem ser explicadas num par de minutos, e no entanto pedem bastante envolvência e pensamento estratégico. Os playthroughs variam imenso. É impossível saber-se quem vai ganhar até ao último minuto de jogo. É sempre possível ganhar-se, com sorte suficiente. 

É um jogo para dois jogadores; cada um possui sete peças e quatro dados piramidais (a contagem de pontos nos dados é feita pelos vértices). O primeiro tabuleiro que foi descoberto usa as cores preto e branco para distinguir as peças dos respectivos jogadores. Os jogadores querem que as suas peças entrem no tabuleiro, percorram o respectivo trajecto, e saiam do tabuleiro. Existem dois trajectos diferentes, um para cada jogador, que são simétricos, e cruzam-se no centro do tabuleiro.

Sempre que um jogador faz um lançamento de dados, pode mover uma peça sua à sua escolha ou que esteja no tabuleiro, ou que esteja fora e que ainda não tenha finalizado o seu percurso; a peça move-se um número de casas igual à pontuação indicada pelos dados.

O jogador não pode mover peças para casas onde já estão peças suas; se colocar uma peça sua onde está uma peça adversária, a sua peça toma o lugar da adversária, que sai do tabuleiro, tendo que reiniciar o seu trajecto.

Acho muito fascinante que o Jogo Real de Ur, como outros jogos semelhantes da Antiguidade, esteja estruturado como um jogo de estratégia e, no entanto, seja tão baseado em aleatoriedade. O resultado do jogo, o vencedor e perdedor, depende em igual medida de sorte e das escolhas dos jogadores. E as duas escolhas que constituem o leque de agência do jogador (avançar uma peça no tabuleiro, ou colocar uma peça no tabuleiro) resultam em bastante entropia, uma vez que o tabuleiro pode e costuma encher-se rapidamente.

Por experiência própria e por observação de outras pessoas, acho que o jogo têm tendência a provocar um sentimento metafísico específico, difícil de verbalizar. Um sentimento que parece ser comum à maioria dos jogadores, pelo menos da primeira vez que o jogam; um sentimento que está ligado à imagem mental de que os jogadores, apesar de escolhem as suas jogadas, estão sempre acorrentados à sorte; que batalham um contra o outro, que planeiam, mas que forças cósmicas empurram a balança; que estão a ser veículos de coisas maiores, que os guiam.

Para mim, o Jogo Real de Ur, como outras coisas do seu tempo, reafirma o quão pouco sabemos sobre as nossas origens. Todas as formas de arte acabam por ser janelas para o passado, é certo. No entanto, ao contrário de um poema épico ou de um monumento, a título de exemplo, um jogo que passou de local em local, de geração em geração, e na minha opinião (não sendo eu perito em História, ou Antropologia, ou Arqueologia, ou etc.) diz mais. Fala mais alto, e aquilo que diz chega mais longe; confiná-lo a um ponto específico da História é ser redutor.

Acredito, e admito que isto é muito subjectivo, que há algo sobre a vida que é comunicado, formal ou informalmente. Algo escondido na estrutura do jogo; algo comunicado pela simetria dos trajectos das peças; algo comunicado pelos trajectos estarem escondidos no tabuleiro, pelos movimentos curvos que fazem.

Algo abstracto, sobre a natureza do universo, sobre o nosso lugar neste, sobre o nosso trajecto, o nosso caminho, escondido, cruzando-se com os caminho dos outros, sobre como estamos todos em caminhos separados, mas acabamos invariavelmente a colidir uns com os outros.

Algo sobre como, apesar de tudo, somos controlados por forças que nos ultrapassam, que não compreendemos, que não controlamos, maiores que nós.