Apetece-me apropriar-me do arranque de todos os artigos da rubrica Mystery Box do Isaque e perguntar: “Já ouviu falar de Nantucket?”. A resposta a esta pergunta é uma de três possíveis. A primeira é afirmativa pelo reconhecimento da importância histórica do porto da ilha de Nantucket, em Massachussets, a segunda se foram uma das pessoas que ao longo das 3 horas de stream do episódio desta terça da Caça ao Indie me viu a jogá-lo. A última é a mais habitual, um singelo “não”, a resposta quase criminosa pela enchente de jogos que invadem o mercado e que nos impedem sequer de ouvir falar de todos os bons jogos que são lançados semanalmente.

Nantucket é um jogo de estratégia com elementos de RPG que não só vive de forma alternativa a história de um dos grandes livros da História da Humanidade, Moby Dick, de Herman Neville, como o usa para construir um jogo brilhante com um setting inédito. Um jogo em que a navegação, esse elemento tão português, é rainha.

Em quase todos os momentos de Nantucket sentimos que há uma aura de jogo e RPG de tabuleiro que lhe assenta como um barco na água. A nossa ligação com o mítico Capitão Ahab e a sua arqui-inimiga Moby Dick vai mais longe do que uma mera informação ou rumor corrido dentro do ambiente do jogo. Nós conhecemos o famoso Capitão, e fomos amaldiçoados por si a derrotarmos essa grande ameaça que habitava o Pacífico, vinculando para sempre o nosso destino ao da baleia albina.

O visual é todo construído com desenhos com um traço de comics (ainda que o nosso avatar pareça ter sido desenhado por Hugo Pratt) misturado com uma linguagem de mapas e gravuras do Séc. XIX, que nos ajudam a imergir na ideia de mapa mundo presente numa mesa que se vai abrindo à medida que desbravamos os mares (por nós) desconhecidos. Uma decisão de direcção artística perfeita para o jogo em questão.

Ao criarmos o nosso personagem (anos depois de termos sido um mero cabine boy para Ahab, estamos agora com o estatuto de Capitão) percebemos os elementos de RPG que compõem o jogo. A selecção de uma classe com atributos e habilidades diferentes vão influenciar a nossa eficácia em diversos pontos. Se apostarmos em navegação teremos bónus nas travessias marinhas, e se em ciência teremos a capacidade para curar ou imunizar a nossa tripulação. Podemos escolher sermos arpoadores e teremos bonificações ao combate, ou artífices e poderemos re-rolar dados e ter bónus aos materiais.

Nantucket, assim como o mar e a caça à baleia, é implacável. Até termos a capacidade de comprar uma embarcação maior e termos mais tripulação, cada viagem pelo Atlântico e pelo Pacífico são verdadeiras provações que muitas vezes levam à nossa morte.

As formas de perder o jogo em Nantucket e sermos lembrados com uma lápide em nossa honra erigida pela nossa tripulação são mais que muitas. Seja em combate, já que Nantucket, como veremos mais à frente, tem dos sistemas de combate mais difíceis para os jogadores de que tenho memória, ou seja por infortúnios próprios da vida no mar. Entre tempestades que podem matar ou desmembrar parte da nossa tripulação, para além da fome e sede, doenças e abordagens piratas que muitas vezes são-nos apresentadas em formato de evento pop-up. As possibilidades de resposta a cada um desses eventos depende não só da nossa especialização e da nossa tripulação, como das nossas estatísticas. Cada escolha é acompanhada de probabilidades de sucesso ou insucesso, e depois de rolados os dados virtualmente em background pelo jogo, conhecemos o nosso destino.

Normalmente estes eventos trazem quase sempre adições (ou remoções) de traços negativos ou positivos para nós ou a nossa tripulação. Se tivermos um evento sobre a nossa adição à bebida e formos bem-sucedidos podemos obter um traço de personalidade que reduz para 0 o nosso consumo diário de álcool, o que é um factor importante visto que o grogue é um dos nossos recursos obrigatórios à navegação. Quando a meio da noite um dos nossos marinheiros nos revela que está apaixonado por nós podemos aceitar e ambos ganhamos o traço de “sodomitas” ou podemos escolher humilhá-lo por essa afronta e ele perderá moral e ganhará o traço de rancoroso. Quase todos estes traços têm influência não só no decorrer mecânico do próprio jogo, mas também nas possibilidades de pesquisar upgrades para as nossas embarcações.

O nosso tabuleiro de jogo é um mapa que compreende apenas os Oceanos Atlântico e Pacífico e é nestas águas que nos iremos movimentar. Vamos encontrando alguns portos pelas nossas viagens, que começam no titular porto de Nantucket, para além do da Horta, entre diversos outros ao longo destas regiões. O que senti após 16 horas em jogo é que o número de portos é relativamente reduzido, e ainda que isso se traduza (e seja compreensível) em dificuldade mecânica para gerirmos os nossos recursos até encontrarmos literais portos seguros, quebra ligeiramente a nossa imersão num jogo que tenta mesclar a História da caça à baleia com os elementos ficcionais de Moby Dick.

As actividades em cada porto são igualmente simples, e representadas por um ecrã igual independentemente do local onde estivermos atracados. Um mercador onde podemos comprar e vender recursos, e onde nos devemos abastecer para a próxima viagem, sendo que o jogo nos indica o número de dias de navegação que conseguimos até que um dos recursos se esgote. Uma taberna onde contratamos e despedimos tripulação e um estaleiro onde encomendamos os upgrades ao nosso barco. Um ardina que não só nos mostra acontecimentos históricos reais próximos das datas em que estamos a “viver” no início do Séc. XIX, e que é também quem nos dá quests para cumprirmos. Esta não é a única forma de obter quests, já que os membros da tripulação que vamos encontrando também nos trazem missões pessoais para resolvermos.

O problema do sistema de quests é que cedo percebemos que é bastante limitado, assim como muitos dos elementos que compõem este jogo. Entre servir de transporte de carga entre portos, caçar baleias lendárias (em combates lendários muitas das vezes) ou pesquisar novas áreas de caça da baleia, há muito pouca diversidade nas nossas missões

A história, ainda que partindo de uma premissa interessante de sermos coagidos através de uma maldição a prosseguir o legado de Ahab é apenas pano de fundo para o que Nantucket tem de qualidade: um brilhante jogo de tabuleiro digital.

Simultaneamente meritório de palmas e de urros de injustiça é o sistema de combate. De início temos apenas um pequeno bote baleeiro onde escolhemos três elementos da tripulação para formar a nossa party. É fácil perceber as forças e fraquezas de cada uma das classes, nossas e da tripulação. As arpoadores conseguem atacar os inimigos, os cientistas são os healers, os navegadores têm as acções de imunidade e defesa e os artífices conseguem fazer-nos re-rolar o nosso turno. Cada personagem tem um dado de acção, sendo que dependendo do quão evoluído ele é, maior o número de faces do dado com acções dispõe, para além de em casos de multi-classe, como o do nosso capitão, podemos escolher dados diferentes para cada turno. O problema é que se os inimigos (que surgem sempre num número máximo de 3) têm uma acção por cada turno, no nosso caso temos uma acção por cada bote, ou seja, se todos na nossa party rolarem uma face do dado com acção, temos de optar apenas 1 para exercer.

Isto dificulta bastante o jogo até conseguirmos barcos maiores que permitam 2 e 3 botes, permitindo-nos ter duas ou três acções por turno respectivamente. Não chega a dificuldade de conseguirmos que nos saia alguma acção nos dados individuais de cada personagem, e para além disso só podemos escolher uma das hipóteses. Para a quantidade de mortes de personagens (e até de game overs com a morte do nosso capitão) achei que o jogo roçava o injusto, mas assim que aumentei o número de botes todo o desafio normalizou. E em alguns aspectos até facilitou, visto que evoluí tanto até mudar de navio que quando o fiz já a dificuldade era simples.

Os inimigos têm acções num sistema de tokens que veríamos num jogo de tabuleiro. Com cores distintas, cada adversário coloca o seu token virado para baixo ou sobre si, ou à frente de um dos nossos personagens, mas com. Visto que não sabemos quem é que o adversário vai atacar ou como, defender ou ripostar é mais difícil. Paralelamente a isto o próprio tabuleiro tem condições associadas aos turnos e às marés/clima, e que influenciam a jogada, seja com efeitos atribuídos aleatoriamente, seja com bónus ou debuffs aos nossos ataques.

Não sei se Nantucket algum dia terá pretensões para se adaptar a uma presença física em jogo de tabuleiro, mas o que sei é que esta foi a maior surpresa deste início de ano. Um brilhante jogo de estratégia com elementos de RPG passado num ambiente diferente, com um setting a circundar a caça à baleia e com interligações a Moby Dick. Depois de o terminamos percebemos que tem limitações mecânicas que só podem ser justificadas pela dimensão do Picaresque Studio que o criou. Mas não deixa de ser sólido, desafiante e coeso não só com a temática, para além de ser um magnífico jogo de estratégia. Um dos meus jogos favoritos do ano até agora, que sabe brilhar com mérito próprio, e que merecia ser muito mais conhecido do que é.