Os videojogos estão repletos de casos em que é virtualmente impossível separar o cunho genético do autor da sua obra. Exemplos de obras que existem dentro da idiossincrasia do seu criador e que dele dependem como nascimento artístico. A série Metal Gear é um desses maiores exemplos.

Goste-se ou não de Hideo Kojima, ou considerem-no em alguns aspectos sobrevalorizado (como eu, humildemente, considero), é inegável que da sua mente surgiu uma das séries narrativamente mais influentes da História do meio. O processo do seu divórcio com a Konami veio levantar também outras questões relacionadas com a propriedade e autoria. Afinal, Kojima pode ser o autor de todos os Metal Gear, mas não é o seu proprietário. E com a sua separação da histórica companhia nipónico deixo isso bem patente.

Não sei se por despeito, ganância, tomada de posição ou uma mistura das três, a Konami acabaria por anunciar a sua intenção em continuar a afamada série já sem o seu pai. E é aqui que tudo descarrila, certamente com um sorriso de regozijo de Kojima que sabia ser extremamente difícil pegarem no seu “filho” e criarem algo condigno com ele.

Metal Gear Survive, deu-lhe razão.

Há muito tempo que a Konami tem tido muitas das suas más práticas trazidas a público, o que nos levou até há uns anos no primeiro episódio do defunto programa Foi Bom, Não Foi? a desejarmos a sua falência. Uma empresa com um espólio surpreendente mas que muitas vezes teima em não conseguir levar essas propriedades intelectuais a toda a extensão das suas potencialidades.

Metal Gear Survive é um dos maiores sinais de desrespeito para com o público, numa indústria que infelizmente demonstra mês após mês novas formas de abusar da confiança dos jogadores e consumidores. Transvestido de “encerramento do ciclo” do arco deixado entreaberto com Metal Gear Solid V, Metal Gear Survive demonstra logo à partida que a sua construção visual é essencialmente uma reutilização de assets e elementos do último jogo criado sob a autoria de Kojima.

Não consigo imaginar quem foi a pessoa ou as pessoas que decidiram que a melhor forma de dar continuidade ao mundo de Metal Gear seria com a inclusão de uma epidemia zombie. Esta decisão, aliás, parece mais algo que alguém sugeriria como a possibilidade mais irrealista para continuar a série, mas que outro alguém com poder dentro da estrutura da Konami conseguiu ser idiota o suficiente para aprovar. Como aquelas coisas que começam como uma piada mas por serem repetidas tantas vezes assumem uma aura séria. Utilizando um exemplo que o João Machado costuma dar, Metal Gear Survive está para a série original como o Abel Xavier estava para a Selecção Nacional. Ninguém sabe como é que este lá foi parar, e o mais provável é que de início tenha sido por piada, mas eventualmente acabou por ficar até se reformar. Metal Gear Survive deve ter sido o resultado de alguém na Konami dizer com um tom jocoso: “Sabes o que é que agora isto devia ser? Um survival game com zombies!”. Depois de uma série de gargalhadas esse piada implantou-se e tornou-se algo. E esse algo vai ficar marcado já em Fevereiro como um dos piores jogos do ano.

É quase certo que a cúpula corporativa da Konami ache que os jogadores são estúpidos. Em muitas situações são, e existe uma proporcionalidade directa entre o fanatismo de muitos e a sua abertura para comerem qualquer coisa que lhe seja posta no prato, mas Metal Gear Survive vai longe demais. Precisamos de falar das microtransações que preenchem tantos cantos escuros de Metal Gear Survive para perceber a afronta tremenda que este jogo é? Precisamos sequer de resvalar na necessidade de se pagar dinheiro real para se ter acesso a save slots adicionais para além da singela a quem temos acesso, para ficarmos indignados com o que aqui foi feito?

Adaptar as fundações de Phantom Pain a um survival game com zombies pode ser algo que tenha um mínimo de piada nos primeiros minutos mas que rapidamente se esvai numa monotonia desinspirada. O jogo rapidamente se revela tão superficial que se percebe que a tentativa da Konami de provar que Metal Gear não é obrigatoriamente sinónimo de Kojima se torna uma tentativa risível e até ridícula.

Nem a série, nem Kojima, nem especialmente os milhões de jogadores fãs de Metal Gear mereciam este lançamento, ou sequer o arrojo da Konami em acreditar que qualquer coisa seria aceite, sem ser refutado. Pensar que este pode ser o canto do cisne de uma das marcas mais poderosas do mercado dos videojogos deixa-nos a pensar na área como um todo, no respeito pelos jogos com um pendor autoral, e com as valências das companhias em relação às suas propriedades. Metal Gear Survive poderia até ser um survival stealth game mediano, mas infelizmente é impossível olhar para ele como mais que um Metal Gear medíocre. O peso do nome estará lá sempre, e aquilo que inicialmente poderia ter sido visto como o seu grande elemento vendável, foi na realidade a sua grande cruz. E uma que marca o fim e a morte de uma parte integrante da evolução dos videojogos.