Vivemos numa época estranha, em que a cultura pop está em alta e é quase sobreposta a tudo o resto, em especial há um tema que vem sido recorrente aqui e noutros meios que é o da nostalgia. Nostalgia é bom, se servir apenas para dar um pequeno toque de familiaridade, um pouco de tempero a um prato que por si só é que deve ter toda a riqueza de sabor, mas quando pegamos em toda a nostalgia e a enfiamos a martelo para chamar a atenção é como pegar em todos os temperos e ervas que estão no supermercado e despejar na panela, a sobrecarga de sabor é tanta que só enjoa.

Seja por poder de compra ou porque são quem está agora a criar conteúdos, ou porque é simplesmente mais simples e bonito olhar para trás do que andar em frente, estamos com uma sobrecarga nostálgica para quem cresceu nos finais dos anos 1970, passando pelos 80s e acabando nos 90s. Seja ela nos remakes desinspirados de franquias que eram famosas nesses anos transformando-as em quase um travestismo do seu original como Ghostbusters ou Total Recall no cinema, e até as boas modernizações como Ducktales e talvez Muppet Babies na TV (tenho as minhas dúvidas com este, além de terem tirado o Rowlf, o Scooter, a Skeeter, o Bunsen e o Beeker do elenco e colocado uma Muppet nova chamada Summer, the Penguin que eu assumo tenha assassinado os outros para roubar o seu lugar, esta série passa-se na rua, que é totalmente o oposto da original na qual os personagens estavam em casa e tinham que usar a sua imaginação para viver as suas aventuras). Também existem aquelas que vão buscar inspiração a esses tempos como Stranger Things em todo o seu ambiente ou a prestes a estrear Cobra Kai na sua temática. Nos videojogos, talvez pela facilidade de recursos, existe ainda mais esta busca pela nostalgia. A utilização do grafismo ou o estilo ou a temática de algo do passado é constante, ou até por todos esses elementos como pode ser visto em Crossing Souls que é um óptimo exemplo de como uma enchente de nostalgia não é o suficiente quando não há nada para o suportar. Mas nos jogos já estamos habituados e não é disso que vamos falar hoje.

Finalmente, ao fim de meses e mais meses sentado em cima disto vou escrever sobre Ready Player One, o livro de Ernest Cline e uma antevisão do filme de Steven Spielgerg que irá estrear no final de Março, e sobre o qual o nosso Mota já tinha falado e tem a sua visão particular sobre o tema, que eu respeito mas com a qual discordo no geral, porque ele focou a sua visão na ideia distópica de um futuro possível para nós, uma espécie de Black Mirror Light, mas para mim o livro tem tantas falhas, tanto erro, que nem sequer consigo olhar para isso.

Atenção, a partir daqui há montes de spoilers para quem nunca perdeu as horas a ler o livro, para quem leu e gostou aviso já que vou fazer de advogado do diabo mas vou tentar não estragar muito a vossa perspectiva do livro:

Eu percebo que quem gostou tenha sido pela enchente de referências que o livro tem seja porque as viveu ou porque é fixe, contudo estas referências não são mais que uma lista de supermercado sem nexo a maior parte das vezes. Ready Player One até podia ser um livro interessante sem 91% delas, se fosse mais focado na perspectiva que o Mota gosta nele. As referências estão lá apenas por duas razões, uma sendo que o autor é um fã delas e queria armar-se com o seu conhecimento de cultura pop dos anos 1980 afirmando-se como um Ubergeek tentando ganhar o respeito e admiração dos seus pares.  A segunda porque como já mencionado, nostalgia dessa época está na moda.

O problema principal é que a maneira como tudo está construído é errada assim como para quem é focado.O público que se iria identificar imediatamente com estas referências não é o do livro, porque nós quarenta e trintões não nos identificamos com um miúdo adolescente que é o protagonista Wade/Parzival, que para mim é uma das maiores falhas deste mundo.

O mundo real vs virtual no enredo

Ready Player One passa-se num futuro distópico em que quase toda a humanidade “vive” num mundo virtual chamado OASIS, é aqui que grande parte da população “trabalha” ou encontra tudo, citando o artigo anterior sobre este tema/livro:

Em Ready Player One só existe o que está no Oasis. Ler um livro? No Oasis. Ir à escola? No Oasis. Pedir uma pizza no Oasis faz com que a empresa real nos leve a pizza a casa. O Oasis tem tudo”.

Contudo há uma falha gigantesca para mim que é a falta de explicação do porquê que o mundo chegou a este ponto, porque é que as pessoas pouco a pouco se refugiaram num mundo virtual quase 24/7? Qual é a situação política e geográfica no planeta? Há uma aparente divisão de recursos gigante entre ricos e pobres, como é que isso aconteceu? Se toda a gente está no OASIS quem trabalha nos campos e nas fábricas? Ainda há disso? Como há comida, energia, transportes, se este é um mundo colapsado quase pós-apocalíptico? Todo o livro centra o seu fraco worldbuilding num mundo virtual, e mesmo desse mundo o pouco que nos é apresentado é apenas um mega concurso criado por um dos seus co-inventores aquando da sua morte em que é revelado que escondeu um easter egg no massivo universo virtual e que quem o encontrar não só herdará toda a sua fortuna como o controlo do próprio universo virtual. Tornando-se assim uma espécie de dono daquilo tudo, se pensarmos bem nisso.

As únicas pistas para esta gigante caça ao tesouro seriam encontradas numa biografia do inventor que, como tinha crescido nos anos 70/80, era recheada de referências a esses anos pois eram tudo o que ele conhecia, ele não era obcecado pelos anos 80, ele cresceu lá, há uma diferença enorme. De início quase toda a população tenta encontrar o Halliday Egg mas ao fim de alguns anos, quando o livro pega no enredo apenas alguns mais obcecados o fazem como Charlie… desculpem Wade, o miúdo que é o nosso narrador,“herói”, e guia nesta gigantesca fábrica de chocolates virtuais.

Wade, o vazio

No mundo virtual Wade usa o nickname Parzival num *wink wink nudge nudge* nada subtil ao cavaleiro da Távola Redonda que era considerado o mais puro e por essa razão o único digno de encontrar o Santo Graal. Wade, é o nosso ponto de vista, um miúdo órfão, pobre, obeso, mas com bom coração…

Wade passa grande parte do seu tempo, quando não está na escola ou no mundo real onde vive com uma tia e o seu namorado que ocasionalmente lhe bate (completando o Bingo do coitadinho), a estudar e pesquisar tudo o possível para encontrar o prémio. Filmes, Livros, Séries, Jogos ele tornou-se um especialista em tudo o que seja uma referência obscura da vida de Halliday. Aqui está logo um dos problemas de Wade, porque é suposto acreditarmos que ele é um apaixonado sobre a cultura dos anos 1980, mas ele não gosta realmente da cultura pop dos anos 1970, 1980 e 1990, ele tem uma espécie de Síndrome de Estocolmo com aquilo. Se não existisse a caça ao ovo, se não tivesse obrigado a ele próprio a ler e reler, ver e rever, jogar e rejogar ele provavelmente teria outros interesses, teria outros gostos que não estes. Wade não é um apaixonado como Cline tenta fazer-nos pensar, usando-o como um espelho de si próprio, ele é um estudioso sem paixão. É como aqueles miúdos que vão estudar Medicina ou Direito e são os melhores da turma ou são violinistas ou pianistas não porque gostam ou têm um talento inato para isso mas porque foram forçados a tal pelos pais porque no futuro lhes dará uma posição social e financeira melhor.

Wade é oco de conteúdo próprio, sem a caça ao ovo ele não existe, e isso nota-se no final do livro onde paira um ar de “e agora o que vou fazer…?” Há algo ainda mais frustrante nisto, ele não gosta de tudo o que existia nessa era, ele “gosta” do que Halliday gostava e só isso, ele não tem um pingo de originalidade.

Wade, o imortal

Entre os vários problemas do livro, um dos maiores é o cronológico. Eu sei que é picuinhas, mas eu tenho um problema sério quando os autores quebram as suas próprias regras de worldbuilding. Razão pela qual deixei de ver séries como Game of Thrones ou não gostei de certos filmes como The Last Jedi. Coisas como Fast Travel ou meia dúzia de personagens conseguirem lutar com um exército de mortos-vivos sem sofrerem um arranhão quando duas ou três temporadas antes apenas ver um desses mortos vivos era o suficiente para gerar pânico, ou existir gravidade no espaço para largar bombas numa nave gigante mas não existir para um personagem flutuar no vácuo e depois conseguir puxar-se de volta para a nave são desrespeito às regras criadas no seu mundo. Ready Player One tem uma falha gigantesca nisto.

De acordo com o protagonista, entre a morte de Halliday e o início do livro passam-se cerca de 5 anos, e aí Wade é um adolescente, mas nesta altura ele é também um grande especialista em toda a cultura pop de Halliday/Cline, ele afirma mais que uma vez que viu os filmes A, B e C centenas de vezes tomando notas estudando cada detalhe em busca de pistas para encontrar o Ovo, e não eram só 3 filmes eram dezenas, assim como séries, músicas, livros, jogos, e outros. Aqui está o problema maior, Wade é um miúdo, se começarmos a fazer as contas de quanto tempo demoraria para ele rever tudo o que diz que fez ele teria que ter uns 130 anos. Isto se usarmos como base de cálculo apenas as coisas que são mencionadas no livro, e não todas as outras que se tornaram supérfluas porque não foram utilizadas para a sua busca.

Quem ainda está a ler este artigo pode dizer algo como: Isso é uma figura de estilo, como dizer “Já vi o Top Gun mais de mil vezes” não quer dizer que o tenha feito literalmente.

Eu aceitaria isso se estas afirmações de Wade fossem feitas para um amigo em conversa, mas não são, são pensamentos narrativos que demonstram ao leitor o porquê de ele saber algo, a sua busca de conhecimento era obsessiva a esse ponto, mas cronologicamente impossível porque em altura nenhuma nos é dito que o tempo passa de forma diferente em OASIS, tanto quanto nos é dito, 1 hora no mundo real não é 1 minuto no mundo real, aquilo não é a sala de treinos do Son Goku, tanto quando quanto sabemos o tempo em OASIS é igual ao real.

Wade, o Stalker

Não sei se as nossa psicólogas no plantel irão ler isto, ou se leram o livro, mas há um componente de mentalidade de Wade que acho perigoso, e mesmo que só com o meu resumo gostava de ter a opinião delas sobre isso.

Wade tem um comportamento e atitude obsessivos em relação à busca do ovo como já referido, portanto é possível extrapolar que ele seja assim em toda a sua personalidade seja isso natural ou provocado pela sua atitude. Dessa maneira é compreensível que quando se trate do seu “interesse romântico” Wade seja igualmente obcecado a um nível doentio.

Wade tem uma “paixão” virtual, outra caçadora do ovo chamada Art3mis, que eu teimo em ler como Artthreemis, mas não é como quando eu era miúdo e tinha um fraquinho pela Tiffani Amber Thiessen.  Ele lê o seu blog, vê os seus vídeos POV (equivalente ao Twitch), e guarda todas as fotos dela que consegue… quando a conhece pessoalmente e juntam recursos para caçar o ovo, Wade muda o seu foco obsessivo e passa a viver e respirar Art3mis ao ponto de quase se esquecer da caçada. Esta alteração de foco cria-lhe uma ilusão que estão numa relação apesar desta constantemente lhe dizer que eles são apenas amigos e quando chega ao limite, se afastar completamente dele. É aqui que Wade entra numa espiral obsessiva negativa e entra num campo quase digno de um episódio de Criminal Minds.

Wade continua incessantemente a perseguir Art3mis, ao ponto de literalmente bombardear a sua casa virtual com mensagens e prendas, ou estar à sua porta com uma BoomBox como no filme Say Anything.

O problema deste comportamento é que demonstra que assim como em muitos filmes dos anos 1980 tal como o já referido Say Anything, no final ele consegue conquistar o seu interesse amoroso, apesar de exagerado e errado. Naquela de “mesmo que elas digam que não querem, se um gajo continuar a forçar ela acaba por ceder”. É fácil imaginar que para os dois não haverá um “happily ever after” porque se quando ainda existia a caça ao ovo ele já tinha alterado a sua obsessão doentia para Art3mis, o que irá acontecer quando já não há nada preencher o vazio de Wade sem ser a sua companheira?

Wade e os Plot Devices

Ah… Plot devices, aquelas coisas que acontecem, aparecem ou cenas porque sim. Porque se assim não for não podemos avançar. Como Cline não é grande escritor e o enredo do livro está sustentado nos alicerces de palha que são as suas referências culturais, existem imensos que não fazem sentido nenhum, são tantos que eu prefiro apenas listar alguns como exemplo e comentar brevemente como:

  • Wade não tem dinheiro, é pobre, mas a primeira dungeon está no mundo da escola dele, num local para onde ele pode viajar sem dinheiro. Porque claro que sim.
  • Ao conseguir a primeira chave ou qualquer coisa assim, Wade também ganha dinheiro suficiente para financiar grande parte do resto da sua aventura. Porque senão o livro acabava ali, infelizmente não se passa em Hogwarts e ele tinha que ir a outros sítios. E também ganha patrocínios porque senão o dinheiro acabava…
  • Wade vai a um sítio jogar um jogo e ganhar um prémio que mais tarde irá salvá-lo, dando-lhe uma “vida extra”. Coisa quem mais ninguém faz. Isto porque o autor queria criar suspense já que o leitor é burro e portanto não se apercebe que ainda faltam umas dezenas de páginas para o livro acabar quando o protagonista “morre”.
  • Wade também descobre uma dica obscura por causa de uma passagem ainda mais obscura do seu conhecimento obsessivo para a porta final que é uma espécie de Power of Three e o vilão que já lá tinha estado não viu. Tudo isto é uma coincidência interessante porque 3 é o número de parceiros desde o início da caça com uma aliança entre Wade, o seu melhor amigo Aech e Art3mis, mesmo que a caça desenhada por Halliday tivesse sido feita para uma pessoa só ganhar, e esta parte não tinha sido criada especificamente pelo autor do livro para o “nosso herói”, o seu conhecimento e situação pessoal, ou então Halliday não queria que ninguém ganha-se o seu prémio, ou então porque iria obrigar a 3 pessoas que teriam chegado ali sozinhas a juntar-se para abrir a porta para depois tentarem ganhar a final sozinhos outra vez? eSports? O homem está morto nem ia ver, se calhar era um sádico de primeira.
  • Apesar de Wade ter alguns conhecimentos de hardware informático, já que diz na sua introdução que ganhava cupões de alimentação arranjando aparelhos electrónicos para vizinhos, ele consegue infiltrar-se na sede dos seus maiores rivais no mundo real, fazer hacking para recolher provas dos crimes deles e fugir com elas, numa espécie de Missão Impossível ao nível de Ethan Hunt, James Bond e Jason Bourne num só. Porque aparentemente para esta situação o OASIS é uma espécie de Matrix em que ele conseguiu assimilar conhecimento e treino suficiente para fazer essas coisas no mundo real.

O filme e os seus possíveis problemas

Quando o livro ainda estava a ser editado a um ano da sua publicação a Warner Bros. já tinha comprado os seus direitos para fazer um filme, que acredito vá ser uma banhada absurdamente pior que o livro mesmo nas mãos de Steven Spielberg, pai de muitas das nossas melhores recordações desta época nostálgica.

Como o livro não tem grande conteúdo o filme também não vai ter, vai ser uma amálgama de referências que pelo trailer estão alteradas do seu original por duas razões. Muitas vão ser modernizadas para fazerem sentido ao público mais “casual”, este não é um filme de nicho, é um blockbuster e por isso as referências tem que ser compreensíveis a mais de 80% da população que vai ver. Mesmo que Steven Spielberg estivesse na sua melhor forma, coisa que não está há anos, estas restrições deixá-lo-iam de mãos e pés atados reduzindo a qualidade do seu trabalho.

O outro problema é o das licenças nas referências sendo um dos maiores exemplos o do Iron Giant.

Pelo que podemos ver nos trailers e tendo lido o livro podemos calcular que um dos prémios de Wade na sua busca, para depois usar na batalha final é o Iron Giant, uma diferença crucial do livro no qual ele escolhe Leopardon. A razão de “ter que ser” o Iron Giant é a dos direitos de propriedade intelectual. Leopardon era um Mecha Gigante da série Supaidaman quando Spiderman foi vendido para ser transmitido no Japão e o transformaram numa espécie de Super Sentai. Ora Spiderman e tudo o que lhe está ligado pertence aos overlords da Disney/Marvel/Fox. Assim como outras referências que estão fora do leque da WB limitando-as às suas propriedade e outras que eles conseguiram negociar. Apesar de ter a sua fonte de referências algo limitada, estas vão ser o suficiente para encher de tal maneira o ecrã que não as vamos poder ver todas.

Eu nem vou debater o problema logístico de Leopardon ser um Mecha no qual Wade entrava para lutar e o Iron Giant não. A não ser que ele vá substituir o Ultraman, nesse caso releiam o parágrafo anterior e é quase a mesma coisa.

Ready Player One é um mau livro, provavelmente será um mau filme e seria um péssimo jogo. Tem uma ideia interessante por trás mas é mal aproveitada porque perde mais tempo na masturbação nostálgica do autor do que em desenvolver o mundo de fantasia que ele criou como invólucro para despejar a sua lista de gostos. A sua visão é tão limitada como as suas personagens unidimensionais, sendo o melhor/pior exemplo o herói que nem sequer tem uma viagem de crescimento próprio. Ou de outro conhecimento qualquer. Mesmo com o plot device de necessitar de mais dois para abrir a porta final tudo é conseguido através da sua obsessão, no final da sua aventura ele não aprendeu nada, só ficou rico. É altamente limitado.