Para quem ainda não jogou os vários Kingdom Hearts e ainda planeia algum dia corrigir esse erro, talvez como eu, ainda antes do lançamento do terceiro título numerado, fica o aviso de leves spoilers no artigo para partes de Kingdom Hearts II e 385/2 Days.

Pois é, apesar do original na PS2 ser um marco importante na minha história de jogador, eu e a sequela (assim como a restante miríade de prequelas, “entrequelas”, etc) andamos desencontrados durante mais de uma década. A compilação HD 1.5 + 2.5 Remix na PS4 veio começar a resolver esse distanciamento.

E foi a aventura de Roxas, Axel e Xion em 385/2 Days que me voltou a despertar para os encantos da magia da rotina na relação entre personagens. Extirpado da jogabilidade nesta versão, o jogo é apenas uma gigante cutscene de indivíduos em robes negros a comer o mesmo gelado azul todos os dias durante aproximadamente um ano, no parapeito da mesma torre.

Imagem mais emo que isto, só se o gelado fosse cortante

Sempre entrelaçado com os temas e problemas da trama em desenvolvimento, um dia encontram-se dois e conversam sobre o passado, outro aparece o terceiro e falam sobre o significado da vida, noutro só vai um e expressa a sua solidão num olhar para o horizonte enquanto o gelado derrete. No entanto, quando chegou ao fim, eu senti apreciação por aquela amizade, e um apego ao grupo com o qual tinha partilhado um ano, apesar de apenas terem passado cerca de três horas. Pior ainda, quando comecei Kingdom Hearts II (sim, preferi seguir a ordem cronológica em vez de a de lançamento entre estes dois jogos), estava ansioso para voltar à história do Sora, mas quando o momento chegou, senti de imediato saudades de Roxas e das tardes com gelado de sal marinho.

Gostos pessoais e particulares por histórias emo à parte, é aparente que parte da atração reside na exploração das personagens nas suas interações diárias. Afinal de contas, por muito forte que seja a partilha emocional criada por duas pessoas ao viver uma aventura caótica em simultâneo, se não houver um momento para respirar onde os personagens se possam conhecer e relacionar, a ligação entre estes não passará de superficial. A Bioware, por exemplo, executa muito bem este conceito, seja com a nave própria em Mass Effect e nos jogos de Star Wars, nos acampamentos de Dragon Age: Origins ou Skyhold em Inquisition, onde entre missões podemos interagir e conhecer melhor os nossos companheiros.

Eu faço sempre a ronda aos companheiros após cada missão, e não é só pelas cutscenes marotas!

Mas mais do os efeitos nas relações dos personagens, é também importante efeito para quem interage com a narrativa. É mais fácil entrar no mundo da história quando esta inclui elementos com os quais nos podemos identificar. E há poucas coisas tão universais como a rotina do quotidiano.

As aventuras de Newt Scamander com criaturas fantásticas podem ser uma ótima adição ao universo de Harry Potter, mas parte do encanto de Hogwarts era simplesmente espreitar para um dia-a-dia salpicado de magia, onde qualquer criança/adolescente (ou até adulto, não sejamos preconceituosos) se podia sentir presente num serão à lareira nos dormitórios de Gryffindor. Acompanhar os heróis aula a aula, aprender sobre o universo ao mesmo ritmo que Harry. Ver as relações crescer e transformarem-se.

No mundo dos videojogos, esta imersão é magnificada pela interação, e a série Persona captura todos estes pontos e mais alguns, incluindo as relações, como base da sua jogabilidade. Já agora, este modelo de jogo em Hogwarts é uma combinação tal forma perfeita que é para mim um mistério porque ainda ninguém na Warner Bros. se lembrou de criar esta máquina de fazer dinheiro.

O hábito criado por esta normalidade, traz ainda intensidade adicional aos momentos onde esta é quebrada, e mudanças são introduzidas. Coisas mais ou menos subtis como uma batalha num local antes pacífico, a destruição do lugar onde os personagens se reuniam, ou a falta repentina de um personagem a quem nos afeiçoamos, após a sua morte, terão um efeito muito maior no jogador quando ele foi parte deste passado.

Normalidade também se opõe ao desconhecido. Também da Atlus, Catherine faz uma ótima combinação entre o quotidiano dos serões passados com os amigos no bar, e o terror dos pesadelos de Vincent Brooks. Quando a linha entre estas duas realidades se torna menos clara, e a sua vida real perde o fator de âncora de segurança, o choque psicológico é ampliado.

Incorporar um jogo num calendário extenso pode parecer simplesmente aborrecido à partida, mas quando este é bem implementado e envolvido por um jogo cativante como nos exemplos citados, as suas personagens vão deixar marcas na memória. Ou se calhar sou eu que gosto de calendários e é por isso que me vicio em temporadas de FIFA, mesmo sem apreciar futebol. Esteja a resposta para o meu apego sentimental à história de Kingdom Hearts 358/2 Days nesta reflexão ou não, vou ter que procurar a versão original para a experiência completa.