O “mediático” vence nos pilares que o sustentam, os quais muitas vezes estão imbuídos de um único componente, o “desconhecido”.

Hoje fala-se muito de videojogos. E para aqueles que nunca foram a esse “beco escuro”, quaisquer descrições que existam que possam dar uma forma, cor e conteúdo ao mesmo, são descrições que poderão ser consideradas válidas pelo mais comum mortal (e não só). É por isso muito importante para quem dá informação, que haja uma preocupação em que esta seja realmente válida, consistente, e com fidedigno conhecimento do “beco”no mundo atual, o qual abarca tantas mais coisas além da “escuridão”.

Tratamos os videojogos como as mais antigas bruxas, como o bode expiatório fácil, como uma repetição da mais antiga história da Televisão, das Máquinas Fotográficas, do Cinema, todos eles criados para nos roubarem a alma, tirarem-nos o livre arbítrio e fazerem com que o “Eu” não mais exista.

Pareço exagerada? Perfeito.

É assim que sinto algumas (felizmente apenas algumas) das notícias que vejo pelos media fora. Um “exagero” relativamente a um Mundo que tem tanto potencial construtivo e desgraça como qualquer outra atividade feita em excesso por dádiva de prazer, seja ele derivado a que fatores seja.

Antes de tentarmos realizar ciência é fundamental experienciarmos, vivermos e compreendermos de modo humano aquilo que pretendemos analisar, investigar e realmente perceber. Tal como um arquitecto não consegue desenhar uma casa sem conhecer o seu terreno de construção, penso que um investigador e um profissional de saúde, devem também compreender o terreno onde tencionam atuar. Tal torna-se fundamental, já que só assim garantimos que as investigações que são feitas terão um correto método de investigação, abordagem ao tema e consequentemente resultados fiáveis. Penso que esta perspetiva é importante, principalmente quando falamos numa área tão tenrinha no Mundo das ciências sociais como o Gaming, a sua experiência e seus efeitos. Como Habermas dizia “Até a própria ciência pode ser subjetiva” e principalmente nas ciências sociais, para as hipóteses que colocamos, fazemos por encontrar caminhos que lá cheguem e se esses caminhos não forem dar a essas hipóteses, esses são na verdade – boa parte das vezes – os estudos mais ricos.

A maioria dos estudos realizados sobre o tema do Gaming e Psicopatologia são ainda ambíguos em grande parte dos temas mediáticos. Quando falamos de Adição aos Videojogos ou Efeitos da violência dos videojogos, trazemos apenas dois de alguns dos temas mais alucinantes e cheios de debate no Mundo da Investigação. É por isso interessante averiguar muitas vezes a certeza com a qual vejo estes temas serem falados nos media, quando é falado que os videojogos podem ser tão maus como cocaína e que um jogador pode ser como um toxicodependente, ou tornar-se violento na vida real por andar a dar uns tiros num Jogo de Counter-Strike (“Viva ao Trump“). Basearmo-nos em casos clínicos é importante e realmente imagino o quão alucinante é para maioria dos profissionais clínicos que nunca estiveram muito ligados ao Mundo do gaming, encontrarem uma já vasta maioria (com tendência a crescer ainda mais) quantidade dos seus utentes a jogar videojogos mais de 4 horas por dia e que ainda por cima “poderão ter imagens que podem traumatizar”. Imagino ainda o quão estranho deverá ser pensar-se na possibilidade de os jovens dizerem aos pais “Mas eu pertenço a uma equipa e tenho de treinar! Não dá para interromper o jogo! A equipa depende de mim“. E depois vêm as questões “Mas afinal não é só um jogo? como assim treinar? como assim mais do que 4 horas? como assim todos os dias? como assim imagens violentas? Isto é patológico! Não é normal (para mim)! Nunca Vi nada assim, é estranho!” E aquilo que é na verdade é… desconhecido.

Vejamos a afirmação que já foi sendo falada por mim no Rubber Chicken:

“A Adição aos Videojogos existe! São os Videojogos que provocam a Adição e por isso faz também sentido falar nos “videojogos que são mais aditivos”! 

Estas são três afirmações que muito têm que se lhe diga e num só texto não caberia tudo o que seria possível dizer sobre estes temas…

A patologia?

A vivência patológica, aditiva, obsessiva da atividade de videojogos é real e são vários os casos que aparecem em consultório a este nível, embora as percentagens até há bem pouco tempo se encontrassem entre os 8 e os 13% da população jogadora dependendo do país a analisar. A Adição (no geral) ocorre habitualmente associada a experiências ou atividades que nos dão prazer, que nos fazem concentrar numa outra tarefa ou sentimento, numa “falsa segurança e conforto” que faz esquecer – por falsos momentos – a “vida real” ou situações específicas que temos dificuldade a encarar. Estas experiências ou atividades prazerosas tornam-se um escape, uma tentativa de compensação, uma defesa pobre contra um monstro dentro de nós que nos sentimos impotentes a confrontar.

Sendo assim, serão os videojogos, as compras (e seu marketing associado), a atividade sexual, o exercício físico, o trabalho, etc. os derradeiros culpados da Adição que surgiu nas múltiplas pessoas por estas atividades? (Sim, existe perturbação de adição associada a todas estas atividades) Ora, certamente que não, e em muitas destas atividades pensarmos na “abstinência total” como meio de resolução seria totalmente impensável. Brincando, imagino um profissional de saúde a dizer ao seu utente “Terá mesmo de parar de trabalhar… arranje outra solução! Não tem outra pessoa que ganhe dinheiro lá em casa?“, ou até mesmo “Terá mesmo de parar de realizar exercício físico! Está a fazer lhe mal. Engorde, sempre é melhor!“.

A verdade é que por mais que nestas atividades não coloquemos o bicho de “a atividade é má/compras são más/exercício é mau/trabalho é mau” quando falamos dos videojogos o discurso muda. Porquê? Na minha opinião, porque se trata de uma experiência e de uma atividade atual, que para uma grande parte da sociedade é desconhecida e tudo o que é desconhecido traz a possibilidade de criar crenças mesmo que muitas vezes irrealistas. Penso que neste caso a solução não passa pela abstinência total, mas sim na real compreensão do que leva ao comportamento aditivo. A abstinência dos videojogos não leva nestes casos ao desaparecimento do problema, pois o verdadeiro problema não está de facto no videojogo. O que leva à Adição? Esqueçamos por um momento a atividade pela qual a pessoa se tornou obsessiva (neste caso o videojogo) e vamos pensar no que a levou a esquecer todas as restantes áreas da sua vida. O que de tão pouco atraente na sua vida existe? Que impotência sente esta pessoa? Que situações diárias vive esta pessoa? em que contexto? O que a faz ficar triste, com raiva, passiva, apática na sua vida? Como é a relação com a sua família, com os seus colegas de escola/trabalho (se tiver), com os seus amigos (se os tiver)? Estas e muitas outras são as reais perguntas que nos temos de focar. Era isto que nos devíamos perguntar principalmente! A raiz do problema e não aquilo que camufla o problema. Mas qual é o foco que todos os dias é criado sobre esta temática, quando maioria das cadeias de media falam sobre ela? “O Videojogo é o bode expiatório, o Demónio, a bruxa má, o papão… o problema!”. E nesse momento facilitamos erradamente a vida a uma série de famílias que vão apontar o dedo à atividade em vez de olharem de modo construtivo para o real problema e estratégias para a sua resolução. Para-se de jogar e depois? A raiz do problema que levou o jogo a tornar-se obsessivo é arrancada?

Se há componentes no videojogo, nas compras, no sexo, no exercício, no trabalho – em todas as atividades que podem ser prazerosas ou falsamente compensatórias – que auxiliam a que a Adição seja ainda mais alimentada? Sim, claro, mas não é por isso que são esses os componentes causadores do problema. Imagino uma pessoa adicta em compras em fase de saldos. Decerto poderá ter elevados problemas de auto-controlo – “Leve 3, pague 1“… podemos imaginar o que pode acontecer. Será que por isso deveriam os vendedores de produtos parar de realizar campanhas de marketing? Serão eles potenciadores de uma atividade demoníaca e negativa para a população? Bom… não diríamos isso certo?

No que diferem os videojogos do resto?

Já nos videojogos a conversa muda mais uma vez e existe uma tendência para culpabilizar empresas e Game Developers na realização de “videojogos aditivos” pois eles fornecem mecânicas de rewarding e Flow nos seus produtos que tornam os seus videojogos extremamente cativantes, um “vírus” que se insere na cabeça das pessoas e que as torna adictas. Isto faz-me de facto lembrar quando as máquinas fotográficas apareceram e havia o mito de que sempre que nos era tirada uma fotografia nos era roubada a alma. E mesmo se pensarmos “este tipo de estratégias como rewarding, flow, etc. poderão potenciar para as pessoas que já são adictas a ficarem ainda mais adictas ao jogo“, sim, poderão auxiliar a que a pessoa se motive mais e mais a continuar a jogar de modo excessivo. Mas são essas estratégias que provocam a adição? Não. Faz sentido as pessoas que desenvolvem estes produtos deixarem de criar modos de tornarem as experiências que vendem prazerosas apenas porque algumas pessoas poderão ter uma reação negativa por terem outro tipo de problemas que estão indiretamente relacionados com a atividade de videojogos? Não. Se assim fosse todas as empresas de marketing, porn, ginásios, casinos e até locais de trabalho teriam também de parar de realizar atividades. Por favor… sensatez!

Acho ainda particularmente interessante, quando o conceito de Flow é aqui colocado ao barulho – talvez por isso tenha começado a investigar o tema academicamente. O Flow é um conceito associado ao bem-estar criado por Csikszentmihalyi, no qual o autor procurava o segredo para a felicidade. Este conceito descreve uma experiência ótima, de elevado prazer para quem a realiza, a qual engloba 9 fatores, entre eles um dos principais que é o equilíbrio entre a exigência da tarefa e a competência de quem a desenvolve, o que torna a tarefa mais cativante; a repetição da tarefa, a perda de noção do tempo (nunca sentiram que o tempo passa muito rápido quando estão a fazer algo que gostam de fazer?), entre outros. Ainda assim, existe um ponto particular que é habitualmente esquecido no conceito de flow e que traz grandes debates na investigação sobre o tema, o qual se refere à experiência autotélica (nome complicado… eu sei). Este pequeno grande ponto do conceito de flow é o que caracteriza a atividade que provoca Flow como prazerosa, mas ALÉM de prazerosa também funcional e com um sentido para a vida do sujeito que torna aquela atividade construtiva e extremamente produtiva para o sujeito.

Hmm existe então realmente flow na experiência aditiva ou será o flow realmente a antítese do que significa a experiência aditiva? Não será o flow a experiência da atividade repetida mas de modo saudável para o individuo, na qual ele pode buscar prazer, felicidade, sentido mas não psicopatologia, falsas seguranças, falsa felicidade? Uma discussão para outro momento. Sendo assim penso que poderá ser errado confundirmos “Flow” com “experiência repetitiva por existir um equilíbrio entre a exigência e competência para a tarefa” mesmo que o excesso da tarefa não esteja a levar ao objetivo final – felicidade, sentido e funcionalidade da pessoa. Isto parece-me a mim e a vários investigadores da área simplesmente mimetizar um conceito a algo demasiado básico e que retira o sentido do conceito e da experiência.

Conclusão e moral desta história… devemos ter cuidado a dar informação sobre este tema pois poderemos estar a colocar a pata numa poça muito grande. Se tivermos medo do desconhecido e não quisermos ver a realidade, não iremos também ver quais são os verdadeiros riscos e reais comportamentos associados a uma prática excessiva e patológica. A Perturbação de Adição aos Videojogos está indiretamente ligada ao videojogo, já que este ou outra atividade prazerosa podem, em certos indivíduos que tenham uma maior susceptibilidade/personalidade / defesas levar a que esta tarefa se torne um escape a um problema que é intimamente seu, do seu contexto, do seu modo de viver a sua vida e das situações que esta acarreta. Assumir a responsabilidade das pessoas, de um modo positivo e construtivo é o que levará à solução de problemáticas deste tipo, sensibilizando e construindo em conjunto com elas a solução, quem sabe inclusive acompanhadas dos videojogos e com ajuda destes para sair do excesso, integrando todas as suas outras áreas de vida.  Sendo assim quanto à terceira afirmação… serão os videojogos que são viciantes ou aditivos? ou serão as pessoas que se tornam adictas nos videojogos? Eu apostaria as minhas fichas na segunda opção…

Deixemos o sistema preguiçoso… Partamos ao desconhecido e vamos conhecer o “beco” que se calhar não é tão escuro assim.