Lembrei-me da piada antiga de ter ouvido várias pessoas a dizerem que o Isaac Newton inventou a gravidade. O que é uma coisa engraçada se pensarmos bem, e se num espírito de Flying Circus nos puséssemos a imaginar como era o mundo antes dessa célebre invenção. Devia certamente ser um lugar estranho, especialmente se pensarmos que um tempo antes um outro inventor, Galileu, tinha inventado que a Terra era redonda. Balelas como sabemos.

Eu acho que esta piada deve ter chegado aos ouvidos de alguém na Valve (em inglês, muito provavelmente) e percebe-se a experimentação que viria a ser o Portal com as suas brincadeiras tridimensionais com a gravidade, abrindo um portal literal para que tantos indie developers criassem puzzle platformers tridimensionais que brincassem directamente com a Física.

Um dos mais recentes e mais interessantes twists nesta experimentação vem dos nossos vizinhos de Barcelona, o estúdio Altered Matter, que tem o seu magnífico jogo Etherborn a pedir um apoio extra através de crowdfunding na plataforma Fig. Recebemos uma build recente do estúdio que nos permitiu a exploração dos primeiros “níveis” de Etherborn e que nos fez perceber o que é que este jogo com uma beleza surreal faz de tão bem.

Antes de cairmos (mais tarde vão perceber a piada) a falar das mecânicas e das brincadeiras de Física de Etherborn, temos de falar do quão bonito e poético o jogo é, querendo ir mais longe do que uma série de puzzles sucessivos e nivelados como outros seus congéneres. Somos um corpo sem voz que acabou de nascer e que é chamado por uma voz sem corpo, num complemento lírico que dá início à nossa jornada. É precisamente com os nossos primeiros passos que se dá início a este caminho que nos irá levar a compreender a nossa própria existência.

Visualmente magnífico, é curioso ver como os artistas do estúdio Altered Matter tentaram incorporar a linguagem artística de alguns movimentos do Séc XX na composição visual deste mundo, permitindo uma mescla brilhante com uma estética low poly complementada por uma paleta repleta de cores complementares. Esta abordagem estética não é de todo inovadora mas representa bem o état de l’art actual, e a tendência visual que tem pautado muitos indies nos últimos 5 anos. 

A força visual do (ou da) protagonista é algo que já não víamos há muito e que se coaduna com a aura de experimentação artística e emocional de Etherborn, onde controlamos um corpo transparente de onde é apenas visível alguns órgãos internos, numa mescla fantasmagórica mas em muitos aspectos inesquecível. 

Se visual e musicalmente este jogo nos conquista, é na sua essência de game e level design que toda a inteligência impressa ao jogo vem ao de cima. Como os autores o definem como um shifting gravity 3D puzzler onde os planos de gravidade estão em constante mudança. Um jogo que necessita de uma tremenda capacidade de abstracção da nossa parte, e de escaparmos dos limites normais do que consideramos ser “cima” e “baixo” já que à medida que andamos o plano do chão muda e temos de ter isso em conta para resolver os níveis quase escherianos que aqui existem.

À medida que vamos construído o caminho da descoberta de nós mesmos, temos de ir coleccionando umas esferas de energia branca que alteram o nível e nos permitem ir avançando. É curioso como à medida que os níveis foram ficando mais complexos fui tendo de rodar todo o cenário para tentar perceber para que planos eu tinha de cair ou andar para resolver dado puzzle, já que a mudança de plano e gravidade se dá apenas nas “arestas” curvas entre duas faces. Esta é uma explicação estranha, mas assim que tocam no jogo pela primeira vez percebem o quão instintivo o jogo é e o quanto precisam de “rever” o vosso mindset sobre a racionalidade da gravidade para o conseguirem ir passando. Mas vão perceber ao jogar Etherborn que vão percorrer todos os lados possíveis dos níveis à procura da solução e do caminho certo para os vossos objectivos, e é nessa exploração total das plataformas que existem que dão um sabor perfeitamente distinto a este indie.

Etherborn é uma das melhores propostas que os puzzlers artísticos e emocionais nos têm brindado, mostrando o quanto é possível brincar mecanicamente com os “limites” da gravidade para fazer um excelente jogo dentro de um género que o mercado indie tem progressivamente tentando expandir os próprios limites.