Dou aulas há mais de uma década. Desde o terceiro ano até ao ensino superior, dei aulas a um pouco de todos os ciclos. 5º ano, 7º ano, 9º ano, 10º ano, 12º ano, profissionais, CEFs, EFAs… E há coisas que vão ficando. Vamos aprendendo a avaliar uma turma de soslaio. Vamos, mais do que julgando, colando diversas etiquetas às turmas e alunos que vão passando sob a nossa alçada. Há sempre estereótipos. Mas estes não são estanques nem mutuamente exclusivos. Misturam-se entre si. Volta e meia, baralha-se tudo, parte-se e volta-se a dar e rótulos que assentavam a uns, deixam de o fazer e saltam para outros. É a vida, condensada num ciclo de estudos ou num punhado de anos.

Embora já não seja essa a minha ocupação principal, continuo a dar aulas – e daquilo que gosto! Ensino a fazer videojogos, no Instituto Politécnico da Maia. E, com o ensino a fazer parte da minha vida, foi com naturalidade que me foi surgindo nos armários da mente uma visão “à professor” daquilo que esta E3 nos tem trazido. O Rubber Chicken tem feito uma cobertura interessante da maior feira de videojogos do mundo. In loco, o nosso Nuno Marques, fez-nos chegar todos os temperos necessários para nos deixar a salivar por mais. E cá no nosso burgo, vários núcleos se foram organizando para, de uma maneira ou de outra, vos fizéssemos chegar uma cobertura comentada daquilo que vai andando nas bocas do mundo. À data que vos escrevo isto, a E3 ainda não acabou. Mas terão acabado as mais sumarentas ou antecipadas conferências. E é sobre essas que vos falarei aqui, com especial ênfase naquelas que assisti. Uma visão em jeito de análise a uma turma de ensino superior. Ou não fosse a E3 o mais próximo disso, dentro da indústria.

  • Vou começar pela da Microsoft / Xbox. É o aluno humilde. Sabe que não tem propriamente facilidade em brilhar. Sabe das suas dificuldades. Sabe que corre o risco de chumbar. Não é o melhor da turma nesta matéria em particular, não tem grande inclinação para a matéria, mas arregaçou as mangas e pôs mãos à obra. Encheu o peito, disse de si para consigo que ia à luta e muniu-se das armas possíveis. Como se, numa composição escrita final, meio inseguro sobre o tema, tenha cerrado os dentes e decidido escrever uma dissertação com diversas ramificações, pontos de vista e consequências. Pode não ser aquilo que tenha sido ministrado nas aulas ipsis verbis, mas mostra empenho. Mostra vontade. Mostra trabalho. A Microsoft fez das suas fraquezas o ponto de partida para as suas novas forças numa discussão que, espero, venhamos a ter aqui em formato vídeo ou podcast. Fanboyismos à parte, a coisa extravasa a luta das consolas. E ousemos por momentos saltar da nossa pequena realidade nacional, neste Portugal Playstationistão com laços afectivos à Nintendo Switch mas, em grande parte, de costas voltadas para o verde da Xbox. O recente afastamento da Microsoft de Portugal pode, talvez, alastrar-se para outros países e mercados. Um step back pode não ser, necessariamente, um recuo ou um desinvestimento, mas antes um passo para adquirir perspectiva e ganhar balanço para um salto maior ou diferente do que o habitual.

    A indústria dos videojogos anda a bater de frente no conceito da “exclusividade” como bandeira de venda. Ter que comprar o hardware Y para poder desfrutar do jogo X passou a ser ponto aceite pela generalidade das pessoas ligadas à indústria: criadores, investidores e jogadores. Pois bem, a Microsoft decidiu tentar mudar isso. Podemos aludir que isso pode ser por estar a “perder” a batalha dos exclusivos. Mas isso só será verdade se nos focarmos especificamente num hardware, porque enquanto empresa, aquilo que a Microsoft disse é a verdade nua e crua, doa a quem doer: não há maior catálogo de exclusivos do que o deles, que junta o mercado da Xbox a todo o gigantesco mercado PC em todas as suas vertentes. Assim, a Microsoft assumiu uma política de investimento aberto. Comprou vários novos estúdios, anunciou vários novos jogos, um ou outro novo IP e pôs as cartas em cima da mesa. Não, alguns não vão ser exclusivos. Convenhamos, se um estúdio por eles controlado lançar um jogo e o vender, seja em que plataforma for, eles vão ganhar dinheiro com isso, certo? Pronto. O nosso aluno Xbox foi, então, um empreendedor. Disposto a agitar as águas. Destaques? O maior é Cyberpunk 77. Coisa mais linda! Depois, há outros, como Forza, Dying Light ou Devil May Cry…. a lista compreende perto de cinco dezenas de jogos prestes a ver a luz do dia. Alguns questionáveis, para mim, outros sucessos incontornáveis ou avidamente aguardados.

  • Segue-se a Square Enix. A Square Enix é aquele aluno que até costuma ser bom. Vive nessa vã glória de ser bom na escola. Sem grande esforço. Acomodou-se. Sabe que tem uma aura que lhe permite granjear alguma simpatia por parte dos profess…err… clientes. Por uma razão ou por outra, está cansado, acomodado, deixou-se ficar até tarde a fazer um binge qualquer no Netflix e não lhe apeteceu fazer grande coisa para o trabalho. Entrou no modo “para quem é, Bacalhau basta”. Sarrabiscou qualquer coisa num guardanapo de papel, sabe que, em traços largos, acerta no cerne da questão, e ala moleiro que se faz tarde. E assim foi a sua apresentação. Entrar, duas palavrinhas, e vá lá despachar a linha de montagem. Tem jogos bons, jogos interessantes, algumas incógnitas mas tá a despachar se faz favor que tenho mais que fazer.

  • Já a Ubisoft… a Ubisoft é a aluna trabalhadora. Nem sempre tem as melhores notas e é fortemente criticada mais vezes do que deveria. Não é má aluna, no entanto. Dedicada, aplicada, é daquelas de passa cadernos com a minúcia de um escriba a copiar uma iluminura. Séria, compenetrada, competente. Não brilha, não tem aquela aura de fazer os outros concordarem com ela ou gostarem dela, não tem o toque de Midas. Então, menos inspiração, mais trabalho, a Ubisoft foi metódica. Olá, este é o jogo X, trailer cinemático, umas palavras do criador de sofás do terceiro andar, gameplay trailer, obrigado, até à próxima, venha outro, com a eficiência de uma fábrica de Henry Ford. É, para mim, um dos pontos altos desta E3. Pode ter algumas dificuldades – eu nem sequer sou fã da saga de Assassin’s Creed, por exemplo – mas esforçou-se, fez das tripas coração e vem de lá com uma das melhores notas da turma. Beyond Good and Evil 2 e Skull and Bones encheram as medidas a muitos. Assassin’s Creed Odyssey parece fazer o que Origins fez de bem e adiciona ainda uma camada de decisões ao jogador que só posso aplaudir. Há ali – e não passa de uma opinião pessoal – algumas coisas a fazer revirar os olhos, como The Division 2 e For Honor. Jogos que provavelmente deveriam ter sido abatidos e dados de comer aos porcos mas que também podem ser só embirração minha. Tanto um como outro ficaram aquém das expectativas, tanto as minhas pessoais como as do mercado. For Honor podia ter sido fantástico e ficou-se pelo básico (tinha tanto a aprender com o sistema de combate de Kingdom Come: Deliverance…). The Division criou um fantástico setting, ultra-realista e depois cospe em qualquer réstia de suspensão de descrença possível ao tornar os inimigos uns monstros sugadores de clips de balas. Mas aceita-se. São marcas com imagens fortes, merecem nova aposta. Se não der, talvez aí venham a falecer de vez. Em todo caso, nota fantástica para a Ubisoft. Fez bem aquilo que se propôs fazer.


  • Bethesda… oh Bethesda, o que foste fazer… A Bethesda é aquele aluno com capacidades, mas que entra por maus caminhos. Faz coisas bem feitas. Mas perde-se em devaneios e por vezes esquece-se daquilo que dele se pretende. É um aluno que gosta de se fingir mais rebelde do que é, não gosta de assumir que errou nem de dar parte de fraco, e não há como negar que gosta de chocar um bocadinho as pessoas. Quando é preciso pontuar, pontua, nem que para isso se cinja aos serviços mínimos. Mas tem aquela mania de dizer que ouve heavy metal quando sabemos que passa as tardes a ouvir Marante e Marco Paulo. É daqueles que insiste em ser uma espécie de palhaço da turma porque acha que lhe acham piada e se mantém alegremente alheio ao facto de que se riem DELE e não COM ELE.

    Aquela entrada em palco foi das coisas mais idiotas que vi alguém fazer numa conferência do género. These aren’t the droids you are looking for. Esta não é a audiência para essas parvoíces. Apresentar Rage 2 como se fosse a melhor invenção desde as Pizzas Calzone também não vos fica bem. Nós lembramo-nos do que foi Rage. Um meh. Ter o Tico e o Teco com menos química do que Trump e Melania a falar sobre o jogo não lembra ao diabo. E viram aquele silêncio desconfortável entre ambos? Pois. Foi desconfortável.  Mas pronto, dá para passar. Fallout 76 merece, pelo menos, o benefício da dúvida. Doom Eternal merece a devida vénia, até. Mas o resto… o resto é só xico-espertice. “Olhem o que temos para vos mostrar, olhem! OLHEEEEEEEEEEEEEEEM! Estas! Duas! Magníficas! Moooontanhassssssssssss! Fantásticas, huh? E… E…… E olhem! Agora! Estas! Letras! A dizeeeeeeeeeeeeer….. Elder! Escroques! SEEEEEEEEEEISSSSSSSSSSSSSS!”. Dude… seriously? É que é assim que divides a malta, Bethesda. Por um lado, yey, óptimo, palminhas para vocês, estão a fazer o Elder Scrolls VI, o que cai tanto no ramo das novidades como o facto de para o ano estarmos em 2019. E se não chover faz sol. Por outro… Era quem te espetasse duas bofetadas, para te dar a educação que os teus pais não te dão em casa! Achas que alguém veio aqui para ver duas montanhas e 10 segundos de texto? É assim que apresentas um projecto? Que defendes um trabalho? Estás a fazê-lo? Como? Em que fase estamos? Pré-produção? Desenvolvimento? Tuning? Testes? É para sair quando? No fim deste ano? No fim do próximo? 2021? No pior crossover de sempre, em 2077, para ser o jogo que a malta do Cyberpunk está a jogar nos seus ecrãs? Não, não e não. Preguiçoso. Fraco. Esperava mais de ti. Ou, then again… há que por mais tabaco nisso, recompor-te e separar as águas. Trabalho é trabalho, conhaque é conhaque. Não me interessa saber o que andas a consumir fora das aulas, mas aqui, se faz favor, é para trabalhar, ok? Grande abraço.


  • Passamos à PlayStation. É bom aluno. Conservador. Engravatado. Deve ser tipo o delegado de turma, ou assim. Tem gente a dizer amém a tudo o que diz. É muito, muito bom aluno. Sabe fazer as coisas e sabe vender o que faz também. O único senão é que já não surpreende. Sim, é bom, ninguém lhe tira o mérito. Mas torna-se enfadonho de bom. É daqueles alunos que aprende mas não dá pica. O gajo apanha tudo à primeira. Já está? Já percebeste? Não queres que te explique de outra forma? Com uma metáfora? Um exemplo prático? Vamos fazer uns exercícios para consolid…. Não? Não é preciso? Ok, então e se eu… não? Não precisas? Não? Então… então pronto… olha, vou estar por aqui… ainda nos falta tempo de aula. Podemos falar disto… ai já não precisas? Ok. Pois é… rico tempo. Pode ser que chova. A PlayStation sabe o que vale, sabe que tem bons jogos, sabe que tem o público na mão. Tomem lá Last of Us 2. Arre, vocês podiam fazer aquilo com gráficos em jeito de animação polaca daqueles que o Vasco Granja apresentava e havia de haver gente a dizer que era o melhor jogo do mundo na mesma. Sim – e refiro-me às vozes de dobragem polaca também, com o mesmo Thomasz a fazer as vozes de todas as personagens em tom monocórdico, quer sejam homens, mulheres, cães ou cavalos. The Last of Us 2 é bom. Ghost of Tsushima deixa água na boca. Kingdom Hearts fez alguns corações tremer. O remake do Resident Evil 2 fez alguns soltar uma pinguinha e etc, etc. E novidades? I mean... Não é que os jogos não sejam bons ou fantásticos. Mas se já esperamos isso de vocês, deixa de ser aquele choque, aquele baque do coração, né? E depois, o foco nos exclusivos, contra a maré. Quem não tem uma PS4 em 2018… vai comprá-la agora para jogar o Ghost of Tsushima? Ok… E quanto ao Death Stranding? Quanto a esse, cara PlayStation, deixa-me que te diga que tens mais a perder do que a ganhar. Se for um bom jogo, baaaaaaah, já todos o sabemos, já todos o esperamos, já estamos até fartinhos de esperar. Mas se for algo que eu poderia ter perfeitamente visto no cinema, ou se for um Walking simulator com uma história interessante… vai ficar um amargo de boca grandito. Ai vai, vai!

  • Depois há a PC Gaming. Este é o aluno modesto mas que sempre que arrota parece acertar numa resposta. O tipo faz tudo, programa, desenha, percebe de história e, com jeitinho, tem uma medalha olímpica de natação. E pior, é um gajo modesto. Não anda a escarrar aos sete ventos nem a pedir para o admirarem. Valoriza tanto uma obra de arte de René Magritte como um sarrabisco de um miúdo de 5 anos. E é esta humildade de ser capaz de apreciar tanto o mais complexo quadro de Van Gogh como o mais surrealista garatujo de um crianço que lhe dá graça. O PC Gaming tem de tudo um pouco, desde o mais artsy ao mais terra-a-terra, do mais pixelizado ao mais fotorrealista. Competente, sóbrio, menosprezado até. Certo é que entrou, fez o seu trabalho e saiu. A turma pode não gostar. O professor gosta.


  • Há mais alunos, mas vou-me ficar pela Nintendo. A Nintendo já foi uma das melhores alunas da turma. Mas desleixou-se neste semestre. Deve ter arranjado namorico, ou coisa que o valha. “Interesses divergentes dos escolares”, escrevia-se na caderneta. Certo é que a Nintendo não quis fazer uma apresentação. Tem potencial, mas não foi honesta, não foi sincera – e é de todo melhor pensar assim do que pensar que, pura e simplesmente não fez o trabalho e, portanto, não tem nada para mostrar. Foi, para mim, a pior das conferências. E ela sabe fazer mais e melhor. How dare you give me anything other than your very best? Foi um “olá, temos isto e isto, e agora vamos passar 34 minutos desta apresentação de 43 minutos a apresentar cada uma das personagens deste jogo. Porque vocês não devem ter mais nada para fazer. E nós também não temos mais nada para mostrar”. Isto é vender as personagens ao invés do jogo. Pior, em termos de negócio, apelará exclusivamente àqueles que, de uma forma ou de outra, já têm uma ligação com aquelas personagens. Quem não tem, não será por esta entediante apresentação que passará a querer o jogo. Imagine-se uma Riot ou uma Valve a apresentarem os seus League of Legends / Dota 2 desta forma. “Olá a todos, este é o jogo X. Vamos agora passar as próximas 10 horas e 47 minutos a apresentar cada uma das centenas de personagens.”. Não, Nintendo. Não. Porquê? Para quê? Quem é que decidiu que isso seria uma boa ideia? Tudo o resto que a apresentação tinha de bom foi derretido, amarrotado, descartado por essa lastimável forma de apresentar, não um jogo, mas parte do seu conteúdo. É um aluno que está no ensino superior a entregar trabalhos ao nível dos alunos do 9º ano. Não, pá, não podes ir só à wikipedia e chapar aqui o texto para uma folha A4 batida em Comic Sans. O que se esperava era um relatório composto, numa estrutura formal, com – e de acordo com o modelo – umas 20 páginas de conteúdo, índices e capas. Pior? A forma até podia escapar se o conteúdo fosse pertinente ou relevante. Não é. Fica muito, muito aquém daquilo que se espera de um aluno nesta fase. Nintendo, teremos que ir a exame.