Acho que pela primeira vez tenho de agradecer à E3 pela sua azáfama se interpor naquilo que era o mergulho exaustivo dentro de um jogo. Tenho pena que o ritmo incessante de lançamentos desde o mercado indie aos AAA não dê grande margem de tempo para regressarmos e repensarmos o que achamos de um jogo depois de esgotarmos todos os seus pontos. Tenho a certeza que se tivesse tido tempo de escrever sobre Vampyr durante a E3, a opinião que tinha sobre o jogo seria bem mais positiva do que a que tenho agora.

A imagem dos vampiros sempre foi uma das mais inspiradoras para mim, e não apenas por estar desde a adolescência quase sempre vestido de preto. A forma como a cultura foi desenvolvendo, romantizando e mistificando a ideia dos vampiros sempre foi algo sedutor, e por isso não é de surpreender que dos ambientes de pen and paper RPGs, aquele que mais me diz é mesmo o World of Darkness, especialmente Vampire: the Masquerade. Mas eu acho que a última década, e muito por culpa da série Twilight, a imagem dos vampiros acabou por sofrer com o embate e a massificação da sua infantilização.

Nos videojogos contam-se pelos dedos os jogos sobre vampiros, ainda que a maioria seja de alta qualidade, em especial a saga Legacy of Kain e a adaptação de Vampire: the Masquerade. Portanto a ansiedade de jogar Vampyr era grande, especialmente por saber que por trás dele está a empresa Dontnod, conhecida pelo grande pendor narrativo dos seus jogos.

Vampyr passa-se em Londres em 1918, uma cidade acossada pelo impacto da Primeira Grande Guerra, com muitos dos seus homens adultos a morrerem nas trincheiras e tantos outros a voltarem com sequelas para a vida. A pobreza e a doença espalhavam-se e faziam da cidade algo muito diferente do que todos conhecemos. É o caso do nosso protagonista, o médico Jonathan Reid recém-chegado da frente de batalha e que se vê transformado em vampiro nos instantes iniciais.

O grande valor de Vampyr vem logo ao de cima nos seus instantes iniciais, com o paradoxo do nosso personagem e a forma como isso está intrinsecamente ligado com algumas decisões mecânicas. A premissa do jogo relembra-nos que uma das grandes forças do estúdio francês é a sua capacidade de terem alguma originalidade conceptual em torno das suas criações.

Apesar da nossa condição e da nossa necessidade de vivermos uma vida nocturna, rapidamente somos acolhidos por um investigador vampírico que só por acaso é director de um dos hospitais e acaba por nos oferecer um emprego, já que os serviços médicos estão sobrelotados com a gripe espanhola que veio ajudar ainda mais à degradação de Londres. A cereja sangrenta no topo do bolo é que Reid, para além de vampiro, não é um médico qualquer: é um dos maiores investigadores hematológicos do mundo. Há quem diga que não há coincidências, especialmente porque Reid não conhece a identidade do vampiro que o “tornou” num, ouvindo apenas a sua voz numa ligação telepática especial entre sire e childe (perdoem-me o jargão de Vampire: the Masquerade).

Vampyr é eminentemente um jogo de investigação com ramificações de história baseadas nas nossas escolhas, fazendo dele do ponto de vista narrativo um bom paralelismo com o famoso pen and paper RPG da White Wolf. As muitas histórias que vamos desvendando são interessantes, mas as linhas de diálogo são diversas vezes conversa fiada que não ajudam ao tom soturno e sério que o jogo quer passar. Se estamos a tentar desvendar os segredos de determinado personagem, as perguntas genéricas sobre o estado da cidade são inócuas e em nada ajuda o facto de que a escrita não é brilhante na maioria das vezes.

Este jogo publicado pela Focus é um verdadeiro RPG na verdadeira acepção do conceito e é fácil sentir que as nossas escolhas e acções têm verdadeiro impacto na cidade de Londres, sobretudo na forma como decidimos abraçar (trocadilho intencional) o grande dilema moral que serve de espinha dorsal conceptual e mecânica de todos o jogo. A progressão de Jonathan Reid em termos de poder é feito através de level up e XP, que pode ser obtido através dos encontros fortuitos com inimigos pelas ruas de Londres, pelo cumprimento de missões principais e secundárias e pelo assassinato de NPCs. De todos estes aquele que maiores valores dá é o assassinato de NPCs, tendo situações em que um destes equivale a centenas de bandidecos em combate. O XP que cada NPC nos pode conferir é variável e depende não só do seu estado de saúde como do aprofundamento do conhecimento que temos dele, ou seja, se cumprirmos e investigarmos as suas missões/histórias pessoais o valor do XP que ele nos dá aumenta.

Se a forma mais fácil de subir de nível é matar NPCs, isto traz-nos diversos dilemas, morais e mecânicos. O primeiro é que Reid quer abertamente combater o monstro e a sede dentro de si, assumindo-se como um médico e querendo curar e salvar o máximo de pessoas, independentemente de serem boas ou más. Isso percebe-se num aspecto mecânico interessante que é o estado de saúde de cada bairro de Londres. Sempre que dormimos (e é apenas assim que os dias avançam e que podemos fazer level up) qualquer NPC com uma doença que esteja presente no bairro vai contagiar outros, numa progressão exponencial entre o número de doenças e o número de pessoas

Para controlarmos a epidemia podemos criar poções e oferecê-las aos personagens enfermos, ainda que a sua cura tenha apenas efeito na próxima vez que dormimos. O efeito do estado de saúde e segurança de cada bairro implica mecanicamente na ameaça que temos presente, o que significa que zonas com estados críticos vão ser muito perigosos para nós de deambular, especialmente porque Vampyr (erroneamente, na minha ideia, mas já lá vamos) decidiu encaminhar-se por uma lógica à la Dark Souls de combate.

Se decidirmos aceitar o monstro que somos e começarmos a matar NPCs isto tem efeitos na cidade. Primeiro porque nos círculos sociais dos personagens assassinados começará a haver consequências, sejam entes queridos que nos vão começar a hostilizar, passando até por alguns que irão desaparecer por completo. Ao aumentarmos o número de cadáveres na cidade estamos a ajudar a propagar doenças, e quantos mais NPCs matamos mais difícil é de conseguirmos controlar o estado de cada bairro, especialmente se tivermos em conta que os recursos para criar poções são escassos. Em cada zona há um personagem central que é o pilar da região e que não só necessita de níveis mais altos para podermos matar, como o retorno de XP é muito maior, mas também o impacto negativo na cidade.

Esta interligação entre o dilema moral de Reid entre a sua humanidade e o seu vampirismo e as consequências na cidade são interessantíssimas. Há um dilema adicional da pool de XP de cada personagem ser variável. Se por um lado à medida que conhecemos alguns NPCs a fundo vamos percebendo os terríveis seres humanos que ali se escondem, há muitos outros com passados e vidas trágicas com os quais criamos laços verdadeiros, e torna-se ainda mais difícil matá-los.

Continuo a achar que esta interligação mecânica e conceptual de Vampyr é um dos momentos mais originais dos últimos anos e tenho pena que uma série de elementos acabassem por impedi-lo de ser tão bom quanto eu acredito que poderia ser.

No meio de tudo isto Vampyr acaba por sofrer de grandes problemas de suspensão da descrença, tão bem resolvidos nos manuais de Vampire: the Masquerade e que aqui nos impedem de sentir o mundo como credível. Se durante o combate conseguimos beber porções de sangue de adversários sem os matar automaticamente, porque é que no caso dos NPCs temos de beber o seu sangue até os matar? Não existe um meio termo? É que esta dualidade de sede é pouco explicada e acaba por penalizar o dilema moral, que repito, é um dos momentos mais originais que vi serem aplicados nos últimos anos.

Passei mais de 10 horas a decidir tentar manter “a besta” dentro de mim e alimentar-me apenas de ratos e de adversários. Mas depois de matar dezenas de humanos, fossem eles simples bandidos das ruas de Londres ou caçadores de vampiros, achei que a dificuldade auto-imposta decorrente da moralidade de Reid (e da minha) não fazia sentido. Novamente, World of Darkness encontrou uma série de imposições mecânicas tanto para a saciedade como mas as consequências para a nossa Humanidade de matarmos alguém. É verdade que algumas destas ideias poderiam ser difíceis de aplicar num action RPG, mas decerto que não eram impossíveis, e não ficariam nesta balança desequilibrada de não ser carne nem peixe em que Vampyr ficou.

O combate, herdado desta verdadeira febre (não-espanhola) dos jogos à Dark Souls é mais um argumento de venda do que algo que adicione verdadeiro valor ao potencial que Vampyr tinha. Se decidirmos ir por um caminho de pseudo-pacifismo em que não matamos NPCs facilmente ficamos underleveled em relação aos boss, mas para habitués dos jogos da FromSoftware enveredar por aí é apenas um desafio adicional e é um caminho válido.

Eu acho que já falei mais de Vampire: the Masquerade neste artigo do que de Vampyr, mas convenhamos: qualquer um que tenha jogado ao RPG sabe que uma das suas maravilhas é a lista quase infindável de poderes vampíricos distintos que só queremos ter pontos suficientes para os “aprender” a todos. O level-up em Vampyr é insípido e o manancial de poderes de Reid é tão desinteressante que sempre que olhava para a janela de level-up ficava deprimido com a ideia de potencial perdido.

Falando em insipiência, que poderia facilmente ser o subtítulo deste jogo, o combate é tão repetitivo quanto a diversidade de inimigos, e para mim que queria investigar na parte narrativa e investigativa soava mais a algo martelado para agradar a um público alargado que atira notas de euro e dólar quando vêem um action RPG à Dark Souls do que um verdadeiro contributo para o mundo. Para mim o combate deveria ser mais interessante e menos frequente, porque – falando novamente da suspensão da descrença – se em cada rua de Londres temos combates utilizando os nossos poderes, decerto que o a ideia da existência dos vampiros deixaria de ser tão secreta quanto os argumentistas nos querem passar.

A cidade é repetitiva e eu até percebo que para sentirmos os efeitos do estado crítico de cada região temos de calcorrear as suas ruas, mas no caso específico da Londres de Vampyr o fast travel não era preciso: era obrigatório. Nas ruas labirínticas e desinspiradas da Londres enferma de 1918, ter de correr a cidade de extremo a extremo pareceu-me algo para mascarar não só a reduzida dimensão da área jogável, como busy chore para alargar artificialmente a sua longevidade.

Já por diversas vezes repeti que me aborrece mais uma boa ideia com extremo potencial a ser subaproveitado do que um jogo abertamente mau. Vampyr tem um dilema interno mais grave que o dilema moral de Reid: não sabe se quer ser um jogo narrativo ou um Bloodborne. Ao tentar apelar ao público como eu que está investido numa boa história acaba por fazer-nos sofrer com más decisões conceptuais e alguns diálogos sofríveis, mas que são manchados verdadeiramente pela necessidade martelada de lá colocar um combate mediano. Este desajuste fez-me lembrar o quão bem a trilogia Mass Effect conseguia equilibrar a coisa sem parecer que nenhuma das duas componentes era acessória. Por outro lado a Dontnod quis seduzir os fãs de action RPGs num combate apenas “engraçadinho”, mas cujas potencialidade fantásticas de dinamismo e introdução de diversidade de poderes lhe dessem uma identidade própria. Mas falharam redondamente nessa intenção.

Vampyr não é um mau jogo, mas é daqueles que quanto mais nos embrenhamos mais vamos sentido que o que está à volta não é um mundo, mas apenas placas de madeira pintadas e dispostas num palco onde nos movemos. Com um potencial incrível e desperdiçado, Vampyr fica na História como uma das mais inovadoras ideias de mescla conceptual com impacto mecânico, mas que resulta na conclusão de praticamente tudo o que o estúdio francês faz: muito aquém do que poderia ser na realidade.