Vamos lá pela enésima vez dizer que as aventuras gráficas (ou point ‘n click adventures se preferirem) são o género que mais nos influenciou e que existe uma nouvelle vague de malta mais ou menos da nossa idade que anda a revitalizar.

Esta revitalização tem tido algo de ligeiramente negativo para o género que é a influência no magnífico trabalho e obra da LucasArts. Os seus jogos são tão incontornáveis que vemos nos dias de hoje demasiados criadores a ficarem acorrentados a essa influência, criando por vezes quase fac-símiles de qualidade inferior de Monkey Island e afins.

Unforeseen Incidents também é inspirado por todos esses jogos, e isso percebe-se pelo tom constante de todo o jogo. Ou na gestão de inventário e na forma como os puzzles nos aparecem. Mas percebe-se sobretudo na mordacidade do protagonista, que não sendo o herói típico acaba por enquadrar-se dentro das constrições que a LucasArts criou para o personagem-tipo, mas consegue ir mais longe do que isso.

Harper Pendrell consegue ser menos herói-tipo que os anti-quase-heróis-tipo da LucasArts. Porque ele não é uma caricatura de um herói desastrado e acidental, mas sim um tipo perfeitamente normal, um tarefeiro que se vê envolvido em algo maior do que ele próprio, e cuja dimensão só consegue perceber pela metade. O elenco de Unforeseen Incidents tem até esse condão: de serem personagens fortes que o são a partir da normalidade do dia-a-dia.

Um dos grandes conflitos tonais de Unforeseen Incidents é o equilíbrio entre a leveza e a jocosidade herdadas da LucasArts e o tema deste jogo. Existe uma epidemia grave que mata poucos minutos após o contágio, e que se tem espalhado de cidade em cidade, de bairro em bairro. No prólogo cruzamo-nos com uma mulher na rua que está a sangrar do nariz, boca e olhos. Esta vertente sangrenta é menos habitual nos jogos, e a seriedade de toda a cena acabou por ser o verdadeiro teste do equilíbrio narrativo de Unforeseen Incidents em oposição ao ar descontraído do verdadeiro average Joe que é Harper.

Artisticamente soberbo, é a ilustração/animação manual de Unforeseen Incidents que nos conquista assim que o vemos. Com um traço a lembrar os excelentes casos de Banda-Desenhada independente norte-americana e que se ajusta na perfeição ao ambiente pessimista do mundo retro-futurista do jogo.

O argumento e os diálogos, pelo menos a sua versão inglesa, ficaram a cargo de um velho conhecido: Alasdair Beckett-King, o escritor, comediante e game developer do delicioso Nelly Cootalot, e que empresta o seu humor a este jogo. A qualidade do diálogo de Beckett-King acaba por demonstrar o quanto as interacções dos personagens ficam uns patamares acima do argumento, que, apesar de ser bom, não lhe chega perto.

O argumento é interessante na forma como tem os “pés-na-terra”. com a sua história sobre epidemias e conspirações governamentais, e o facto de Harper ter à sua volta personagens menos caricaturáveis e mais relacionáveis acaba por ajudar a dar coesão à credibilidade do fio narrativo. O facto de estar completamente voiced é uma das grandes surpresas, especialmente porque os actores fazem um belíssimo trabalho com as suas interpretações.

Mecanicamente “preso” aos jogos clássicos, com sistema de interacção entre objectos e resolução de puzzles habituais de qualquer jogo da LucasArts, há porém algo que para mim acabou por não ficar assim tão bem resolvido. Harper dispõe de um canivete-suíço no seu inventário que abre para um sub-menu com os diversos componentes da ferramenta, como uma faca, uma pinça entre outros. Mas esse sistema de navegação com sub-menus faz-nos mais vezes falhar as interacções que queremos fazer do que convenientemente utilizar as diferentes ferramentas do canivete.

Este é apenas um pormenor ínfimo num jogo brilhante, e que é um dos mais sólidos e distintos point ‘n clicks dos últimos anos. Sério e ao mesmo tempo mordaz, descontraído e simultaneamente complexo, Unforeseen Incidents é dos poucos exemplos do género que sabe pegar na sua inspiração óbvia e ir tão, tão mais longe com ela.