Há um conjunto de notícias que está a deixar a comunidade de videojogos em alvoroço. A Valve decidiu mudar a política de receitas do Steam, discriminando positivamente os maiores developers. E, escassos dias depois, a Epic anunciou o lançamento da sua Epic Store para concorrer com o Steam, lançando-a na mesma semana.

Começando pela Valve, actualmente, esta retira uma fatia de cerca de 30% na facturação dos jogos vendidos através da sua plataforma de distribuição digital. A proposta da Valve vai no sentido de cortar essa fatia para 25% quando as receitas atinjam os 10 milhões de dólares e para 20% se as mesmas atingirem os 50 milhões para o jogo em questão.

Certa fatia da comunidade Indie revoltou-se com a situação. Afinal, o mercado Indie, o gigantesco mercado Indie, continua a albergar a esmagadora maioria da produção artística no meio dos videojogos. É lá que encontramos as maiores e melhores pérolas, mesmo que, por vezes, fruto da democratização do acesso, também haja que chafurdar na lama até as encontrar. A medida, que pode ser vista como uma discriminação positiva para com os grandes developers, pode também ser vista como uma discriminação negativa, uma sobretaxa a aplicar a pequenos developers que, não raras vezes, lutam para continuar a fazer videojogos como meio de subsistência. Lutam para os fazer, vender e continuar a poder fazê-lo como forma de vida. De um lado, gigantes multimilionários, do outro, developers ou aspirantes a tal que, muitas vezes, como costumo dizer, fazem um jogo a troco de uma tosta de queijo e um Compal de pêra. A balança parece desequilibrada. E está.

Apetece correr e defender o underdog, clamar justiça por quem mais dela precisa. Roubar aos ricos para dar aos pobres, assegurando que continuo a ter jogos indie de excelência no meu catálogo.

Mas, a frio, procurarei dar um conjunto de pontos de vista alinhados com os diferentes prismas da minha abordagem ao mundo dos videojogos.

Começarei pelo valor percentual que a Steam cobra pela sua distribuição digital. Os seus 30% não serão superiores àquilo que praticam outros meios de distribuição digital, como a Nintendo, a Microsoft ou a Sony. Esses 30% são o valor que a Valve cobra pela prestação de serviços. À primeira vista, é um valor absurdamente elevado. Afinal. a Valve está a buscar quase um terço da facturação de jogos totalmente realizados por outros. E compreende-se a frustração de muitos quando clamam contra esta percentagem. No entanto, se virmos as coisas como uma aquisição de produtos, o caso muda de figura.

Steam, aquando da sua abertura em 2003

Vejamos, são 30% da facturação para ter o jogo disponível em todo mundo. Sem outros custos logísticos. Sem necessidade de cópias físicas e respectivas capas, subsequente transporte e aprovisionamento. Sem ver produto que custou dinheiro parado em stock por dias, meses ou anos a fio. O principal trunfo de uma loja digital é esse: disponibilização virtualmente imediata, ubíqua. Disponibilização, aliás, feita para o maior número de pessoas no mercado. Os últimos números apontam para 125 milhões de utilizadores activos no Steam. Nada mau, para tamanho da montra.

É pelo crescente tamanho da montra que o Steam tem, aliás, mantido a sua liderança. Afinal, é preferível ter 10% de 125 milhões de utilizadores ou 80% de 1 milhão? Mas não será esse o único factor. O Steam vai muito além do mero serviço de montra. E se compararmos os serviços que este oferece, começamos a perceber porque é que a esmagadora maioria continua a lançar os seus jogos na Steam, mesmo com os 30% de royalties.

Coisas como as devoluções, o suporte para oferecer jogos como prenda e as listas de preferências, não são comuns a todas as plataformas concorrentes. E há mais. Há coisas em que o Steam se destaca e se coloca a milhas de distância da concorrência.

Uma delas é a sua gestão da comunidade. Não estamos perante 125 milhões de pessoas que são meros espectadores da nossa montra. O Steam dá-lhes voz! Põe-nos a falar entre si, permite-lhes criticar os jogos (embora isto seja uma faca de dois gumes, como iremos ver), fazer curadoria para outros, permite-lhes criar conteúdo para alguns jogos, como mods e skins, suporta a troca e a venda de jogos e itens, fomenta a comunicação e a partilha de informação em fóruns específicos para cada jogo, etc… há uma panóplia de ferramentas que têm em vista a manutenção de uma gigantesca comunidade em redor dos jogos que esta tem. A partilha da biblioteca de jogos, ou de apenas alguns jogos em específico, feita através do Family Sharing, é, até ver, um exclusivo entre os meios de distribuição digital. A flexibilidade para com periféricos também atinge o seu ponto alto no Steam, com a plataforma a permitir virtualmente todos os controladores e periféricos que há no mercado.

A existência de Curadores é uma das características que, até ver, encontra paralelo apenas no GoG

Isto são ferramentas que estão disponíveis no Steam em regime de exclusividade, na sua grande maioria. Nem Origin, da EA, nem Uplay, da Ubisoft, nem Battle.net da Activision/Blizzard colocam a maior parte destas ferramentas à disposição dos jogadores- Já para não falar de outros players de menores dimensões como a Microsoft Store, a Twitch Store, o Itch.io, o GOG ou o mais recente Bethesda Launcher.

Ora isto leva-nos a uma outra incontornável vantagem que o Steam apresenta: o Steam tornou-se o standard para tudo o que é conteúdo digital. Falemos daquilo que tem estado em frente aos nossos olhos todos estes anos e que, por isso, se torna fácil ignorar: a própria menção da disponibilização de um jogo para PC tem sido associado ao logótipo do Steam!

E isso é outro serviço que a Steam acaba por disponibilizar para os que lá lançam os seus jogos: a colocação de chaves de Steam em sites externos. Tomemos por exemplo o caso do crescente sucesso do Humble Bundle. O site vende – com parte dos proveitos a reverter para caridade – jogos com grandes descontos. São vendidos e facturados lá. E, no entanto, na esmagadora maioria das vezes, tratam-se de chaves de Steam. De notar que aqui o negócio nem está a passar pela Steam directamente. E, no entanto, é um serviço disponibilizado. Há que ter em conta também que certos jogos, como Far Cry 5, podem ser comprados via Steam, mesmo requerendo uma posterior activação na Uplay.

Sim, são 30% da facturação. Mas, parece-me, está a ser demasiado fácil para alguns ignorar os serviços prestados a troco desse valor.

Em todo caso, o passo que a Valve deu merece ser analisado. A Valve propõe-se então cortar as margens para jogos que facturem acima dos 10 milhões de dólares. Sim, podemos vê-lo como uma discriminação negativa contra todos os que NÃO vendem 10 milhões de dólares. Esses são muitos mais que aqueles que vendem, sem dúvida. Mas, vejamos, os pequenos produtores precisam mais de estar na montra ao lado dos grandes do que o oposto. Tomemos um jogo grande como exemplo. Se amanhã o Red Dead Redemption 2 saísse para PC num launcher próprio chamado Rockstar Coiso, poucos duvidariam que ia vender como garrafas de água no deserto. Ou seja, o branding do jogo, o marketing do jogo seriam capazes de, por si só, fazer mobilizar todo um mar de gente para mais um launcher, mais uma loja, maaaaaaaaaaaais um software instalado no PC. Se, no entanto, se tentar fazer o mesmo com um jogo com pouco impacto, estamos a condená-lo ao fracasso.

É como a diferença entre ser o cabeça de cartaz num festival de verão em Cinfães ou a banda de abertura do dia mais recheadinho do Alive. Sabemos que a casa vai encher para ver outros nomes que não o nosso, mas, com jeitinho, ainda fazemos alguns dos que ali estão para ver os nomes grandes comprar o nosso álbum ou, quiçá, uma T-shirt.

Visto de um prisma diferente, a Valve também sabe disso. Sabe que precisa de ter os grandes do seu lado para, com isso, impulsionar o valor de todo o seu catálogo. E sabe também que o facto de surgirem novas lojas digitais ou de que as existentes ganharem maiores dimensões é, para si, uma ameaça. Há um crescente número de jogos de peso a não figurarem na loja do Steam. E, se isso constitui uma ameaça, há que identificar a natureza da mesma: os grandes produtores querem mais dinheiro para os seus investimentos e o investimento no reconhecimento de uma marca compensa, face ao que poderiam perder em exposição mediática junto do Steam.

A Valve precisa, assim, de dar um sinal que é também uma admissão. Se um jogo factura 10 milhões, a Valve já está a facturar 3 milhões com um jogo que não é seu. Assim, a Valve dá o sinal de que, cumprido esse valor, pode ceder no que a royalties diz respeito. Ao dizer que, para grandes jogos, a Valve se contenta com uma fatia de 20%, esta está também a forçar o refazer das contas em investimentos em lojas próprias que, convenhamos, demoram a ganhar tracção. E tempo é dinheiro. Por este prisma, a abordagem da Valve é mais do que lógica e só peca por tardia.

Mas, se o timing está a ser considerado aqui, o anúncio – e aparecimento relâmpago! – da Epic Store não pode deixar de ser tido em conta. Para começar, a Epic não é um concorrente qualquer. O seu Launcher não vai partir do zero, e arranca já com toda a força de uma das maiores massas de jogadores da actualidade: os jogadores de Fortnite. Depois, a Epic vai sendo concorrente da Valve num crescente número de mercados. Abandonemos aqui o lado mais factual a esta abordagem e voltemos um pouco atrás no tempo.

A Valve cresceu muito por força de dois lançamentos marcantes. Half-Life lançou ao mundo o motor de desenvolvimento GoldSrc, com todas as suas ferramentas e potencialidades de modding que permitiram não só que vários jogos surgissem a partir da base que Half-Life deixou, como permitiram também que a Valve, atenta, aproveitasse alguns dos melhores e mais promissores projectos e os puxasse para si. Foi aí que nasceram Counter-Strike, Day of Defeat, Natural Selection, entre outros. Half-Life 2 trouxe nova revolução e, não desfazendo os momentos de brilhantismo do jogo, não consigo deixar de ver nele uma componente mostruário. O jogo foi, sobretudo, uma montra para aquilo que o novo motor da Valve permitia fazer. Olha aqui um bocadinho com veículos, olha aqui um bocadinho com a Gravity Gun, olha aqui um bocadinho da física, e da balística, e do level design… E de novo, a comunidade, com a Valve pelo meio, aderiu e lançou-se a usar as ferramentas disponibilizadas. Team Fortress 2, Left 4 Dead, Portal, Dota 2 surgiram então como bandeiras do novo motor de jogo, entretanto evoluído para Source 2. E, desde então… nada. Um longo hiato por parte da Valve numa altura em que meio mundo suspira por um Half-Life 3 e outro meio clama por ele.

Mas afinal, porque é que não temos um Half-Life 3? Permitam-me continuar a especulação. Resumo-o a uma conclusão: de momento, a Valve teria mais a perder do que a ganhar com o lançamento de um Half-Life 3. Note-se que as coisas não são indissociáveis, e a Valve já factura dinheiro q.b. apenas com o facto de ter o Steam a laborar, por força dos tais royalties. Então o factor económico é interessante, sim, mas perde relevância, quando comparados com outros estúdios. Noutra vertente, temos um jogo que se pretendia que deixasse uma pegada no universo dos videojogos, em termos de história e em termos daquilo que a Valve tem sido exímia a alcançar: lançar as bases de desenvolvimentos futuros, incluindo motores de desenvolvimento.

Ora o mercado actual está inclemente. A fasquia subiu para níveis virtualmente incomportáveis de exigência. A crítica vai-se tornando cada vez mais picuinhas. Mesquinha. Reflexo da democratização da crítica, mas também da falta de senso comum ou de linhas orientadoras para tal – algo que se reflecte inclusivamente na própria Steam Store. Assim, não é incomum ver aqueles que são, inegavelmente, bons jogos, a terem críticas negativas por pormenores de somenos importância. Ou críticos a perderem-se num fio condutor apenas porque se projecta em determinados jogos algo que queríamos que eles fossem e tivessem e ainda não são e têm. Tome-se Red Dead Redemption como exemplo. No momento em que vos escrevo estas linhas a pontuação do público não atinge sequer o 8.0! E trata-se, indubitavelmente, de um dos jogos do ano. Da década! Ora lançar um jogo grande, com expectativas igualmente grandes, neste ambiente hostil é sempre um risco. Que o diga a Bethesda, com o seu Fallout 76. Ou jogos como Vampyr ou Sea of Thieves que, vendo agora, não foram recebidos como se esperava. Assim, há esse risco de, tamanha a expectativa criada, a crítica ser demasiado agressiva para com um jogo da poderosa Valve.

E se isto é debatível, a verdade é que aquilo que vem sendo o apanágio da Valve, com a promoção em parelha de Half-Life e de um novo motor de jogo que se pretende ver abocanhar uma boa fatia do mercado, se torna bem mais complicado por força do domínio de Unity e Unreal no que a motores acessíveis diz respeito. Estima-se que Unity tenha perto de 45% do mercado de desenvolvimento, ao passo que Unreal anda perto dos 13%. São apenas estimativas, é certo, e é provável que falhem por uma margem significativa, mas certo é que as duas juntas representam, de momento, mais de metade do mercado de desenvolvimento. Ora isto dificulta sobremaneira a entrada de um novo player no mercado dos motores de desenvolvimento. Esta pode, então, ser uma das razões. Mais ou menos provável, não temos grande forma de saber. É, no entanto, algo que pode ser debatido porque tem, pelo menos, uma aura de plausibilidade. A suficiente para, pelo menos, ser considerada para esta exposição.

Pois bem. A Epic surge então com a sua Epic Store. Anunciada e efectivamente lançada na mesma semana, a Epic Store não faz as coisas por menos. Aquilo que poderia ser inicialmente descartado como uma jogada apenas relativamente interessante, mais como uma demonstração de intenções, ganha outros contornos quando vemos que, associado ao projecto, está nada mais nada menos que Sergey Galyonkin, o nome por detrás de Steam Spy. Sergey sabe como funciona uma loja, sabe o que faz do Steam uma boa loja e sabe aquilo que poderia ser melhorado, tanto para o cliente como para os developers. E, com o lançamento, podemos verificar que o que aí vem é bem mais do que apenas outra loja onde comprar jogos. A Epic quer um serviço para lançar verdadeira concorrência ao Steam. O anúncio inicial fazia mais do que piscar o olho aos developers: 12% de royalties em vez dos 30% que o Steam exige? É uma diferença abismal que ganha contornos mais significativos quando a Epic diz que, nesses 12% já estão incluídos os 5% de royalties que costumam ser aplicados aos jogos feitos em Unreal Engine. E esta é uma jogada magistral, fortalecendo a posição de um Unreal Engine 4 em crescendo, abafando ainda mais quaisquer laivos de outra potencial concorrência que não a de Unity e abrindo os braços a todos os developers em Unreal 4 que vêem inclinar ainda mais a discrepância entre os 30+5% no Steam face aos 12% flat em Epic Store.

As diferenças são significativas

Mais, esta Epic Store, sabendo que seria uma pedrada no charco, procurou um conjunto de pedras jeitositas, colou tudo e lançou o anúncio final como se de um grande pedregulho se tratasse. Fê-lo atacando a raiz de algumas perguntas, antecipando-as e apresentando uma resposta cabal. Não, não estão só jogos irrelevantes. O que temos no arranque é de pasmar, com Journey, presente no panteão da elite dos videojogos, a dar um passo para o universo do PC através da Epic Store. Seguem-se outros jogos da Annapurna Interactive, como o promissor Outer Wilds e Ashen, com a facada extra de este já se encontrar na Epic Store, até ver em exclusividade. Está anunciado no Steam, é certo, mas a mordidela de leão já tem dono. E a resposta à pergunta “mas será que vai ter jogos interessantes?” também foi dada. Hades é outro dos trunfos, a estar disponível em Early Access em regime de exclusividade. A cereja no topo do bolo? A disponibilização de jogos gratuitos periodicamente. De 14 a 27 deste mês, quem activar Subnautica ficará com o jogo para sempre na sua conta. E de dia 28 de Dezembro a 10 de Janeiro é Super Meatboy que fica disponível. E a promessa é para, de 2 em 2 semanas a coisa renovar. Com isto a Epic volta a matar dois coelhos de uma cajadada só. Responde à pergunta que ficou por fazer quanto a boas promoções e dá um sinal para aqueles que cogitam sobre o número de jogadores que efectivamente terão conta na Epic Store. E, menos óbvio mas não de somenos importância, esta Epic Store dá sinal de que não vai ser apenas mais uma, a juntar a Uplay, Origin, GoG, etc, etc, etc que vamos tendo minimizados ou fechados e que apenas abrimos quando vamos jogar um jogo específico. Ao tornar-se relevante em termos de novidades e promoções, força a sua posição enquanto efectivo catálogo e montra de jogos.

O apelo ganha outros contornos quando deixa de haver o controverso sistema de reviews do público do Steam, que tem sustentado alguns problemas, nomeadamente com as chamadas review bombings, a que ainda recentemente assistimos com Counter-Strike: Global Offensive e Artifact, curiosamente, dois títulos da Valve. Mas, mais importante parece ser a existência de uma curadoria por parte da Epic. Ou seja, aquilo que nos está a ser dito, pelo menos por enquanto, é que a Epic fará uma curadoria aos jogos a disponibilizar, algo que é apontado como uma das principais falhas na loja da Steam e que abre a porta a um sem-número de shovelware.

Algumas das principais questões por parte de developers são desde logo abordadas de forma frontal por parte da Epic, o que, à partida, fará com que muitos juntem a fome com a vontade de comer, que é como quem diz, juntem a vontade de procurar uma loja com menos peso no orçamento, mas uma que também se mostre acessível, sóbria e competente. E uma que, sobretudo, parece disposta a ouvir as preocupações deles.

Os dados estão, portanto lançados, e parece certo que nada voltará a ser como dantes. A Valve já deu os seus primeiros passos, não só com a mudança de percentagens supracitada, como com o lançamento do seu Counter-Strike: Global Offensive Battle Royale (raio de nome cada vez mais comprido) que vem anexo à gratuitidade do jogo-mãe. Pese embora tenha suscitado um significativo número de reacções negativas por parte de jogadores mais antigos, a verdade é que muitos aproveitaram para voltar a instalar o jogo e experimentar o seu modo Battle Royale. Resta-nos esperar para ver o que nos aguarda, torcendo para um crescente número de jogos de qualidade com preços mais competitivos.

ADENDA – Entretanto, estavam estas linhas ainda a arrefecer e a Epic acaba de anunciar outra novidade importante, com o suporte para Multiplataformas a abranger PC, Mac, iOS, Android, PlayStation, Xbox e Switch.