Mal sabem os seus autores que a par do desodorizante Rexona, dá para fazer demasiados trocadilhos e rimas com o seu nome

Há vários argumentos para justificar o tremendo sucesso de Stranger Things, sendo que o verdadeiro festim referencial deve ser o maior deles. A aclamada série da Netflix conseguiu criar um mythos próprio, com uma das protagonistas, a poderosa Eleven, e a dimensão alternativa apelidada de Upside Down a tornarem-se duas das mais famosas criações da série. O Upside Down não é novidade em ambientes culturais e ficcionais. A ideia de realidade alternativas idênticas à nossa mas diferentes em pontos-chave, como se os dois mundos habitassem o mesmo espaço mas estivessem simétricos por um espelho.

REHTONA (幻境双生 no original) (para os que já perceberam significa apenas “Another” escrito ao contrário) utiliza estas ideias para criar um dos 2D puzzle platformers mais interessantes, inteligentes e desafiantes dos últimos anos. O primeiro jogo do pequeno estúdio indie chinês Dot 4 Joy é uma apaixonada dor-de-cabeça para quem mergulha nele.

Num mundo brilhantemente desenhado com uma das pixel art mais detalhadas que vi nos últimos tempos, acompanhamos (e vivemos) o papel da titular Rehtona, que se vê perdida entre mundos: o seu, como sempre o conheceu, e um idêntico, solitário, e negro, onde as plantas definham e morrem. REHTONA é um lobo em pele de cordeiro, com a sua direcção artística a fazer-nos pensar que se trata de um jogo bem mais casual do que é.

No mundo “normal”, REHTONA é colorido e detalhado

A estrutura base de cada nível é sempre a mesma: temos de apanhar a chave para abrir o portão para o mundo negro, e nele encontrar a peça de puzzle e “sair” do nível ao encontro da nossa ave de madeira. Mas com estas variáveis tão simples, é aquilo que os autores criaram em cada um dos 32 níveis que é uma verdadeira mostra de genialidade de level design, do primeiro ao último nível.

Tudo em REHTONA é pensado em termos de caixas quadrangulares. Imagino até que todos os nível foram desenhados em folhas quadriculadas, com os autores meticulosamente a desenharem cada passo possível dos seus níveis complexos.

A minúcia é, aliás, um dos segredos de REHTONA. À medida que vamos avançando nos níveis vão-nos sendo introduzidas novas mecânicas. A ironia deste jogo é que mesmo nestes níveis de aparente tutorial a dificuldade é elevada, e não serão poucas as vezes que não temos de parar, olhar para todo o nível, e pensar o que vai acontecer a cada um dos elementos quando passamos de uma dimensão para a outra.

Os poderes inatos de Rehtona resumem-se à capacidade de fazer um duplo salto, empurrar algumas das caixas e criar ilusões no mundo “normal” que serão solidificadas em pedra no exacto local onde foram criadas no mundo invertido. O número de ilusões que podemos criar depende de nível para nível, mas são sempre em número reduzido, e a sua utilização tem que ser verdadeiramente bem pensada.

O mundo para-lá-do-portão é igual ao anterior, mais escuro, e destruído, como se fosse o cenário de escaramuças entre claques de futebol

Para além disso o jogo permite-nos voltar atrás todos os passos que demos, um a um, ou simplesmente recomeçar o nível. Isto vem embater com um dos pequeníssimos problemas de game design, que consigo explicar e aceitar em termos de “quebra” da linha de pensamento de resolução de cada nível: a incapacidade para apagar as ilusões que criámos. Se quisermos que elas desapareçam temos de ir recuando nas nossas acções até a apagarmos do continuum.

Há muitas variáveis a ter em conta na resolução de cada nível/puzzle, que começam com os simples lasers e os interruptores para os desligar, que passam por plantas que desaparecem no mundo negro e esculturas que lá se solidificam, até emissores de bolhas que se tornam mortais no mundo inverso.

Cada nível necessita de um planeamento prévio, metódico, reflectido, do que cada movimento e alteração irá fazer, obrigando-nos muitas vezes a atravessar o portão entre dimensões diversas vezes para que o nível vá sofrendo as alterações que necessitamos. O facto de existir apenas uma solução única em cada nível acaba por ser não só a sua grande dor-de-cabeça e a representação do porquê deste jogo ser tão difícil, mas para mim é também o seu grande apelo. Um jogo que me obrigou logo nos primeiros níveis a uma série de tentativas-erro e de ficar a analisar cada pedaço de um nível bidimensional brilhantemente ilustrado em pixel art, é algo que merece não só o meu respeito, mas também o meu empenho.

Cada passo deve ser devidamente reflectido no processo de resolver cada um dos 32 níveis.

A qualidade do seu level design, da forma inteligente como cada puzzle está construído é algo reminiscente do melhor que a Nintendo criaria na era em que o nome da companhia era sinónimo de extrema dificuldade, para além de imensa qualidade (que perdura de forma óbvia até aos dias de hoje).

REHTONA é o melhor 2D puzzle platformer do qual não ouviram nem vão ouvir falar. Um jogo nada indicado para jogadores casuais, e que irá enfurecer e frustrar até o mais empedernido fã de jogos de puzzle. Mas não o fará por injustiça mecânica ou por crueldade de game design, mas porque por vezes sentimos que precisamos de nos concentrar de forma total para conseguir seguir as pisadas criativas dos seus autores para encontrar a solução de cada nível. Por 10,79€ este jogo é verdadeiramente obrigatório para todos aqueles que querem ter uma enxaqueca de tanto tentar partir verdadeiros e literais quebra-cabeças.