Objection!

Existem determinadas séries televisivas que eu não gravo nem compro, mas se estiverem a ser emitidas eu mantenho-me preguiçosamente no sofá a ver. Lei e Ordem é uma dessas séries. No ar há mais de 20 anos, tem de existir algo que mantenha esta série no activo (contando com as variações à série principal como Unidade de Vítimas Especiais e Los Angeles) e esse algo é uma estrutura bem pensada de construção de cada episódio. Na primeira metade, temos as equipas de investigadores a tentar decifrar um crime até encontrarem o suspeito mais provável. Na segunda metade, temos as equipas legais da Procuradoria Geral a tentarem condenar os acusados em tribunal. Qualquer semelhança com a velocidade da justiça portuguesa é mera coincidência ou mesmo pura fantasia já no domínio do delírio.

Caso, não caso, caso, não caso…

 

Foi esta a premissa seguida pela Telltale Games que, após ter começado apostada em fazer renascer os clássicos de aventuras gráficas da Lucas Arts, como Sam & Max e Monkey Island, está cada vez mais apostada nos legados do cinema e agora da televisão, naquela que parece ser claramente a estratégia para o futuro da produtora. A estrutura episódica mantém-se neste Law & Order: Legacies com um total de 7 episódios a serem lançados ao longo do ano. Para esta análise jogámos os Episódios 1, 2 e 3, que são os que estão disponíveis até à data.

Assim como a série, o jogo divide cada episódio em duas partes. Numa primeira parte controlamos a investigação, numa segunda parte controlamos o julgamento como equipa legal da acusação. É aqui que existe um grande desequilíbrio em Law & Order com as secções de tribunal a serem muito mais recompensadoras e lógicas que as secções de investigação. Todos os episódios começam com alguém a descobrir um crime. Uma empregada de hotel assassinada, um homem a esvair-se em sangue à porta de casa, uma prostituta morta num beco. Confesso que existe um ânimo inicial quando aparece aquela que é uma das marcas da série: as letras brancas sobre fundo preto com a legenda do local, acompanhadas pelo som inconfundível (que num momento genial de jornalismo online vamos designar como TAM TAM!) e que vão marcando, assim como na televisão, as mudanças ao longo do episódio. Isto transporta-nos para o universo da série e sentimo-nos a entrar na pele da investigação. Infelizmente, essa sensação perde-se rapidamente quando começamos a interrogar as primeiras pessoas.

Tam Tam!

 

A mecânica de jogo é quase sempre a da pergunta e resposta. Ao longo de uma conversa com as testemunhas ou prováveis suspeitos, vão surgindo vários temas de conversa possíveis. Tudo o que vai sendo dito fica registado num relatório, sempre acessível no campo superior esquerdo. Em determinados momentos o jogo coloca-nos perguntas onde podemos identificar possíveis incongruências ou falsidades nas declarações das personagens. Nesses momentos, temos a possibilidade de contrariar as declarações dos interrogados e é aqui que surge um problema. Temos de justificar o porquê de estarmos a contrariar, baseando-nos em tudo o que já foi dito. Mesmo que em grande parte das nossas respostas tudo possa ser relacionado com o nosso relatório, as possibilidades de escolha variam muitas vezes entre o ilógico ou entre o básico quase infantil e muitas vezes damos por nós a escolher à sorte. Por vezes a conversa flui de uma forma gratificante mas quase sempre é interrompida por um momento que deita tudo a perder. Isto faz com que a nossa envolvência nas sequências de investigação seja tão irregular como a prestação de Ice-T como actor.

Entre os momentos de pergunta e resposta, os episódios decorrem normalmente como sequências animadas, nas quais apenas observamos, com a qualidade da narrativa a ser aqui regular. Não existem grandes momentos de genialidade mas também não existem propriamente maus momentos narrativos. No entanto, aqui e ali, existem alguns momentos em que a escrita tenta piadas mais tecnológicas ou geeks, como se os criadores do jogo não soubessem bem qual o público-alvo a atingir, se os jogadores habituados, se os fãs da série. No geral, a evolução da história na primeira parte de cada episódio é, digamos, certinha. Não arrisca mas também não compromete.

Algumas perguntas insultam até a primeira ronda dos concursos.

 

Em cada primeira parte do episódio existe ainda sempre uma sequência de investigação com um mini-jogo de objectos escondidos. A nossa função é encontrar e identificar elementos que podem mais tarde servir como provas, num cenário em que nos podemos deslocar ligeiramente ao longo do mesmo. Continuando no género apontar e clicar (ou neste caso apontar e tocar) estas secções começam a tornar-se demasiado óbvias e repetitivas de cada vez que aparecem por episódio. A Telltale podia ter retirado por completo estas sequências do jogo, ou ter aproveitado para as tornar algo mais trabalhoso e recompensador. Como estão, são uma redundância desnecessária.

É na segunda parte de cada episódio, no tribunal, que o jogo finalmente agarra o jogador, chegando por vezes a tornar-se emocionante. Aqui a mecânica divide-se em duas fases. Na primeira, em tudo semelhante à investigação, temos de interrogar as testemunhas ou os suspeitos chamados a depor. Aqui, basta-nos apontar as incongruências ao longo das declarações. A segunda fase, a mais divertida, é quando a defesa procede às suas perguntas. Aqui possuímos várias ferramentas que podem ser lançadas, tais como Leading, quando achamos que a defesa está a tentar influenciar o júri, No Experience or Lack of Knowledge, quando a defesa faz suposições técnicas ou médicas, Hearsay quando a testemunha ou a defesa falam em nome de pessoas que não estão presentes, entre vários outros dispositivos legais disponíveis através da célebre interpelação Objection! Ao longo do julgamento a nossa prestação faz com que a balança do júri alterne entre a defesa e acusação. Se formos bem sucedidos em cada objecção ou incongruência, enchemos a nossa balança, se falharmos regularmente já a balança tende para o lado da defesa. Isto é importante porque a certa altura podemos chegar a um acordo com o réu acerca da pena. Se a balança estiver muito a nosso favor podemos manter as nossas exigências, se o contrário se verificar temos que ceder no acordo. Perder é na realidade impossível e se falharmos demasiadas vezes ao longo de uma parte do julgamento, somos obrigados a repetir essa secção até termos sucesso. Aqui, os bons têm sempre que ganhar.

É nas sequências de tribunal que este jogo se defende.

 

No final de cada secção de tribunal existe normalmente uma reviravolta no caso e, muitas vezes, temos ainda uma pequena secção de jogo entre investigação e acusação para repor a verdade final. Quando acaba cada secção e cada episódio recebemos as nossas estatísticas e pontuação. Podemos repetir o episódio na tentativa de melhorar a nossa pontuação mas, sinceramente, uma vez jogado, não há grande motivação em repetir. Cada episódio decorre entre cerca de 30 minutos a 1 hora de jogo (caso queiramos repetir logo cada secção para atingir pontuação máxima). No final, não há grande vontade de repetir, principalmente porque não podemos escolher secções separadas. Ter que jogar o episódio todo novamente não é algo muito apelativo.

No aspecto gráfico, Law & Order adopta uma estética entre o realista e o desenhado, com um aspecto próximo do cel-shaded, o que empresta às personagens um traço muito agradável nos rostos. Identificamos à primeira todas as caras conhecidas da série e de todas as personagens que fizeram história nas mesmas: Rey Curtis, Olivia Benson, Mike Logan, Abbie Carmichael, entre muitos outros, em representações fantásticas dos mesmos. O problema é quando se mexem. As animações são simplesmente terríveis e parece que estamos a assistir a um festival amador de teatro de marionetas operadas por um ávido consumidor de cafeína. A captura de movimentos alterna entre o robótico e o risível e isto não parece que seja algo a mudar nos futuros episódios, pois já devem estar capturados e construídos de raiz para toda a série. Os fundos são pobres e sem detalhe, criando um contraste horrível entre as personagens e o que está atrás delas. No que toca aos personagens de corpo inteiro e aos elementos do cenário, Law & Order assemelha-se muitas vezes às animações que os coreanos fazem para ilustrar as notícias do momento. Ou seja, sofríveis. Felizmente estamos quase sempre em plano próximo dos personagens, numa zona de conforto gráfico onde estes problemas são menos intrusivos. Já ao nível sonoro, as músicas são as mesmas da série original e as vozes, embora não as dos actores originais, cumprem o que é suposto, embora sem qualquer virtuosismo.

O que está por detrás dele é que é um verdadeiro mistério!

 

Ainda de notar uma curiosidade. Em todos os episódios está sempre um imigrante envolvido no caso, quase sempre o suspeito principal, mas que faz questão de afirmar ter a cidadania americana ou a protecção da sua embaixada. Não sei se isto é alguma “agenda” ou uma coincidência dos primeiros três episódios, mas não deixa de roçar o racismo. Se isto será uma discussão no futuro? Esperemos para ver.

 

Law & Order: Legacies merecia muito mais. Como está no nome do jogo, há um legado de Law & Order que é um de qualidade. O jogo arrisca muito pouco e acabamos por ter um híbrido entre algo que quer agradar aos jogadores casuais, aos jogadores habituais, ou aos fãs da série, mas que não se decide. Se as secções de tribunal são emocionantes e o melhor do jogo, já as de investigação são muitas vezes ilógicas ou aleatórias e a revelarem falta de trabalho. As animações muito desleixadas e impossibilidade de repetir determinadas secções do jogo separadamente são o pior deste título da Telltale. Ao nível narrativo, a produtora ainda pode melhorar ao longo dos 4 títulos restantes e, mesmo nestes três, sente-se uma clara evolução do segundo para o terceiro. Mas muitos erros de mecânica não vão ser alterados. Law & Order é um título que irá agradar aos jogadores casuais e à maioria dos fãs da série que não sejam jogadores habituados, mas que deixa no final a clara sensação que poderia ter ido muito mais longe. Está disponível em episódios separados para download, ou como um passe de época que dá direito a todos os episódios.

 

(versão analisada: iPad) (disponível em iPad, iPhone. Brevemente em PC e MAC)